Objeto saiu para entrega ao destinatário

Por volta das 9h, uma notificação chegou na tela do celular: “o objeto saiu para entrega ao destinatário”, a encomenda tão esperada estava mais próxima de seu destino. Quatro horas depois, ouvindo um samba nostálgico dentro da Fiorino, Fernando chegou para entregar os produtos que foram adquiridos na loja virtual de Jéssica.

Cenas como essas têm sido cotidianas no cenário pandêmico iniciado no ano passado. Com as medidas de isolamento social, os estabelecimentos físicos precisaram se adaptar aos meios digitais e o comércio eletrônico pareceu como um farol em meio à escuridão. As vendas através do comércio eletrônico foram maiores do que o período pré-pandemia e diversas empresas das áreas de Logística e Transporte registraram lucro recorde, entre elas, os Correios.

Apesar do balanço positivo, a Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência a votação do PL 591/21, referente à  privatização dos Correios como parte de seu pacote de privatizações de estatais. Em 5 de agosto de 2021, a medida foi aprovada com 286 votos a favor, 173 contra e 2 abstenções, e o texto original do governo foi alterado

 A medida envolve o risco de mais de 100 mil trabalhadores perderem seus empregos em um cenário em que existem mais de 14 milhões de trabalhadores desempregados no país.

A principal alegação para a ação é a de que os Correios são caros para o bolso de quem envia, pouco competitivos no mercado, parados no tempo e causam prejuízo aos cofres públicos, mesmo com o lucro recorde. Todavia, estudiosos e especialistas no assunto divergem da visão governista e apontam inconstitucionalidade e militarismo na administração, em nome das políticas neoliberais do governo de Jair Bolsonaro.

Nesses cinco séculos, a trajetória do serviço esteve vinculada ao avanço da tecnologia em nosso país, a distribuição pelo território geográfico e aos rumos desgovernados da política brasileira. Com as distâncias encurtadas pelo comércio eletrônico, a empresa precisa lidar com a concorrência das transportadoras privadas e seu desmonte para a privatização.

O Brasil nasceu com uma carta
Fotografia da carta escrita por Pero Vaz de Caminha, em 1500. Atualmente está guardada a sete chaves em um cofre no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa (Portugal) 

O correio brasileiro nasceu com a história oficial do Brasil. Do início dos serviços postais até os dias de hoje, os Correios assumiram o papel de conexão, oferecidos à sociedade de modo a sagrar-se como uma das instituições mais respeitáveis do país.

Em 1500, Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal, Dom Manuel I, o descobrimento de uma nova terra a ser conquistada pela Coroa. Junto com a “certidão de batismo do Brasil”, a embarcação de Gaspar de Lemos levou as correspondências de Mestre João Faras, o primeiro documento científico sobre nosso país, além de amostras de plantas, animais e objetos. 

Até o século XIX, os únicos meios de comunicação eram as cartas escritas e dependiam da atuação de mensageiros e entregadores particulares. A Metrópole (Portugal) controlava suas colônias através das informações enviadas e recebidas pelos Correios-Mor do Reino e das Cartas do Mar. 

O correio brasileiro tem oficialmente mais de 350 anos. Criado em 25 de janeiro de 1663, através do Correio-Mor no Rio de Janeiro (mesmo que a capital ainda era Salvador). Com o lento povoamento do interior, acelerado depois da descoberta das minas de ouro, os novos fluxos econômicos exigiam que esses serviços fossem levados para as novas fronteiras de povoamento. A Metrópole proibiu a atuação do Correio-Mor no interior do país a partir de 1730, para controlar as informações sobre as riquezas da colônia. Por causa disso, os governadores das capitanias e as famílias mais abastadas tentaram a criação de um sistema próprio de mensagens, que não durou muito tempo. 

Com a chegada da família real em 1808, o Correio-Mor estabeleceu-se de vez no Rio de Janeiro, com maior distribuição das cartas. Outro fato curioso, é que a independência do Brasil também ocorreu por causa da atuação do correio da época. De acordo com os registros históricos, o mensageiro Paulo Bregaro conseguiu encontrar o agrupamento de D. Pedro I, entregando-lhe correspondências informando sobre novas exigências de Portugal com relação ao Brasil. 

Ao recebê-las, no dia 7 de setembro de 1822, às margens do Riacho do Ipiranga, o príncipe regente reagiu às imposições da Corte e declarou a Independência. A partir desta época, o serviço postal se tornou nacional e passou por inúmeras atualizações dos serviços, aquisição de equipamentos para acelerar a distribuição e expansão do serviço em território internacional. 

Segundo Igor Venceslau, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, entre a década de 30 e o final da década de 60, ele ficava a cargo de um departamento público denominado Departamento de Correios e Telégrafos (DCT). Durante a Revolução de 1930, unificou sua estrutura para atender a demanda e a necessidade de comunicação a partir das cartas e do telégrafo. Naquele tempo, outros meios de compartilhar informações já existiam no país, como o rádio, o telefone e os jornais impressos. 

Antes disso, assumiu diferentes formas. “Teve uma época, por exemplo, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal, que esse serviço era oferecido através de alguém que era indicado pelo rei de Portugal, que cuidava do oferecimento desse serviço, mas ele só começou a ser pago quando foi inventado o selo, ali mais ou menos em 1850”, afirmou.

No entanto, o formato que conhecemos atualmente é derivado do período sob ditadura cívico-militar. Criada em 1969, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), tinha por objetivo consolidar seu papel como agente da ação social do Governo Militar, respondendo pelo pagamento de pensões e aposentadorias, distribuição de livros escolares em escolas públicas, usando sua logística para doações em casos de calamidade e fazendo campanhas de aleitamento materno, etc. 

Ainda em suas palavras, “ele sempre foi oferecido publicamente, pela autoridade do Estado, mas teve uma parte em que não era pago pelo remetente, só pelo destinatário. Depois, com a invenção do selo, em 1850, começou a ser pago pelo remetente”. Posteriormente, quando teve início a discussão sobre a mudança no modelo, em 1969, entre as propostas apresentadas estiveram pelo menos três: instituir a ECT, implementar uma autarquia — para dar mais independência ao empreendimento — ou a privatização, que atendia ao lobby e interesse de empresas que viriam a se transformar em multinacionais, como a Fedex, DHL e UPS. Estas viam no Departamento de Correios um concorrente para seus negócios.

No fim, a ECT venceu as outras duas alternativas e, por ser uma companhia, concretizou no país a ideia de oferecer o serviço postal ao mesmo tempo em que visa o lucro. O motivo de a privatização não ter ido para frente, diz o doutorando da USP, é que “o Brasil estava naquele momento num movimento contrário, estava criando sua empresa pública e querendo universalizar esse serviço como um direito, então, portanto, exercido pelo Estado”.

Para Igor, a criação da ECT em 1969 constituiu um movimento importante, de modernização administrativa”. “Permitiu por exemplo que os Correios como empresa universalizasse o serviço postal no Brasil, que significa poder, a partir de então, ser oferecido em todos os municípios”, explicou. “Então, foi sob o formato de empresa pública que o serviço postal se tornou um direito no Brasil, depois na Constituição de 1988, um direito de todos os municípios, de todos os lugares, e além disso, ao mesmo tempo em que ele se tornava um direito de todos os lugares, foi se modernizando e criando produtos novos, como o Sedex, que seria o mais emblemático, foi criado em 1982”, completou.

As propostas de privatização não são novas no Brasil. A maioria delas ganhou força após o fim da ditadura, quando o Brasil passou por um período de redemocratização, havendo uma disputa no Estado e tendo em vista as políticas neoliberais entre 1980 e 1990. Naquela época, o neoliberalismo ganhou ampla aceitação nas décadas após o fim do socialismo no Leste europeu. Os pontos básicos do projeto neoliberal para os países americanos foram sintetizados no chamado “Consenso de Washington”, em 1989 e implantados no Chile pelos “Chicago Boys” durante a ditadura de Augusto Pinochet, servindo de vitrine para o governo de Fernando Henrique Cardoso, que privatizou a Vale do Rio Doce a Telebras. No caso dos Correios,que sempre foram públicos, nunca tiveram o serviço postal realizado pela iniciativa privada e passaram longe das privatizações tucanos. 

Entre as décadas de 1990 e 2010, esse fortalecimento do papel social e da presença da estatal também ocorreu através do patrocínio de equipes olímpicas, abertura de espaços olímpicos, novas modalidades de entregas de objetos, rastreamento em tempo real e abertura de concursos públicos. Depois, os governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff não voltaram a propô-la, diferentemente das gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro no Executivo federal. 

De todo modo, desde a criação da ECT, avalia Igor Venceslau,que é autor do livro “Correios, logística e usos do território brasileiro” houve uma mudança na importância dos Correios para a sociedade brasileira. Antes relacionada principalmente à comunicação, ela é hoje observada cada vez mais no comércio eletrônico devido ao fato de a empresa abranger todo o Brasil, e no que o pesquisador chama de “braço logístico do Estado para políticas públicas”.

Antes da brusca mudança de governo, através do impeachment de Dilma Rousseff, a empresa registrou um prejuízo total de R$ 3,9 bilhões, segundo dados compilados pela Associação dos Profissionais dos Correios (ADCAP). Marcos César Alves Silva, atual vice-presidente da entidade, atribui parte desses resultados negativos às seguidas retiradas de dividendos da empresa. A partir disso, os funcionários da empresa se viram diante da precarização de seu trabalho,com acúmulo de função e retirada de seus direitos trabalhistas. Em 2020, a pandemia de coronavírus obrigou boa parte da população a ficar em casa. 

Com isso, a demanda pelos serviços de entrega aumentaram entre os setores de alimentação, transporte e logística. A categoria dos carteiros foi considerada serviço essencial e precisaram seguir suas atividades normalmente. Os dados oficiais dos Correios apontam que 150 funcionários da empresa haviam morrido em decorrência de COVID-19, mas a realidade pode estar muito mais distante do número apresentada porque os bancos de dados estaduais e federais sobre o número de óbitos pela doença não agrupam por profissão das vítimas. 

Uma Black Friday por semana 
Agência Franqueada dos Correios em Itapevi (SP). Créditos: Google Street View

O número de consumidores na internet brasileira nunca deixou de crescer desde os anos 2000 e durante esse período excepcional não foi diferente. As vendas de e-commerce subiram quase 74% em 2020 na comparação com o ano anterior, de acordo com o índice MCC-ENET, desenvolvido pelo Comitê de Métricas da Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net) em parceria com o grupo Neo Trust. 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em dezembro do ano passado, o setor de Serviços teve o maior peso na impulsão econômica, apresentando crescimento em todos os segmentos. Transporte, armazenagem e envios representaram 12,5% do percentual, com destaque para os Correios, com o maior lucro líquido registrado nos últimos 10 anos, de R$ 1,53 bilhão. 

Alguns dados apresentados pelo Conselho de Administração dos Correios em maio, mostraram o crescimento da receita de encomendas, cerca de 9%, em comparação com o ano anterior. Entre os destaques, o recorde histórico de 2,2 milhões de encomendas postadas em um único dia, alcançado em 30 de novembro, e as receitas internacionais provenientes da atuação no exterior, que ultrapassaram R$ 1,2 bilhão.

“A empresa vem batendo recordes da Black Friday semanalmente, já bateram umas três vezes [a Black Friday] do ano passado, transportando quase 10 milhões de encomendas por semana. Então a demanda está muito aquecida pra todo lugar”, comenta Marcos. E engana-se quem acredita que o correio brasileiro lidera o ranking de atendimento do PROCON-SP. Enquanto a empresa estatal ocupa a 31º posição,a indigesta lista do acumulado de 2021 é encabeçada pelos grupos de telecomunicações, financeiros e concessionárias de águas e energia, muitas delas originadas como estatais vendida por governos passados, como Vivo (herdeira da TELESP) e a Enel (antiga Eletropaulo). 

Cadastro de Reclamações Fundamentadas, disponibilizado pela Fundação Procon-SP, com relação às empresas reclamadas para consultas no acumulado de 2021 

Entre as 10 mil encomendas que circularam semanalmente pelas esteiras e triagens da agências estão os produtos vendidos por Jéssica Torres. A empreendedora de produtos de bem-estar começou com um perfil do Instagram e entregava de forma presencial, mas com a pandemia viu seu número de clientes aumentar e iniciou no final do ano passado o envio através das modalidades de entrega PAC e Sedex enviadas para todos os estados. “O Correio é bem melhor, mais barato, atende todas as regiões. Sempre tem uma franquia perto de casa então posso ir andando para despachar as encomendas e fora que eles entregam super rápido também”. Para ela, a desvantagem é a desorganização dos funcionários das agências franqueadas em alguns raros casos de procura pelos pacotes.

“Usar ou não os Correios? Vamos pegar um exemplo muito básico aqui:, a Edusp, editora da Universidade de São Paulo (USP) vende livros na internet. Agora na pandemia, vendem tudo pelo site. Usando os Correios, ela automaticamente tem a sua área de entrega correspondente a todo o Brasil. Qualquer pessoa, de qualquer núcleo, mas de modo que seja, conseguirá receber em qualquer lugar do Brasil”, exemplifica Igor Venceslau.

As empresas de comércio eletrônico têm expandido seu modelo de negócio para o marketplace, onde pequenos lojistas anunciam seus produtos e a administradora do site faz a mediação da negociação e recebe comissão, mas não possui nenhum vínculo com as partes. Com a pandemia e o crescimento do público consumidor, diversos marketplaces estão vivendo um momento auspicioso. 

É o caso da argentina Mercado Livre, da singapurense Shopee e dos grupos brasileiros Via Varejo e B2W Digital. Para lidar com a demanda, alguns centros de distribuição foram instalados nas principais regiões metropolitanas, atraindo os rumores para uma possível aquisição dos Correios, caso sejam leiloados. Entre as empresas especuladas estão a Magazine Luiza, a Amazon e o Mercado Livre mas, de acordo com o vice-presidente da ADCAP, pode não ser um bom negócio para elas, pois o marketplace vive um cenário com liberdade para escolher qual tipo de serviço atende seus interesses. “Você pode contratar no Mercado a sua logística, ou pode contratar os Correios que escolhem qual a solução que fica melhor pra cada caso. Quer montar uma empresa de entrega? Monta. Quer comprar uma empresa de entrega? Compra. Quer contratar uma empresa de entrega? Contrata. Não quer nada disso e prefere mandar pelos Correios? Manda. Eles podem fazer isso e agem de acordo com a sua conveniência”.

O carteiro durante todo esse tempo

Foi através das mãos de Fernando que um dos pacotes chegou até o seu destino. Com 21 anos de carreira, “todo mundo sabe aqui me chamando de carteiro mesmo. É meio que virou a personalidade de quem é você, o carteiro durante todo esse tempo”. Bem-humorado, começou a trabalhar entregando cartas em Osasco, na Grande São Paulo, foi promovido a entregador, vivenciou momentos de pânico nas mãos de bandidos por dezoito vezes e após ser ameaçado de morte, foi movido para a cidade onde reside,em Itapevi.

Quando perguntado sobre sua carreira, diz que ama sua profissão porque acaba conhecendo novos lugares e pessoas e faz bastante amizade. “É gratificante trabalhar junto com essa empresa, pelas pessoas que você acaba conhecendo e convivendo, vendo todo dia ali é super gostoso”. Aos poucos, sua fala auspiciosa acaba enveredando para um tom mais sério: “A gestão é péssima, no caso são os governantes. Já tem oito anos que não tem concurso público e estamos sendo sobrecarregados para fazer o serviço. O que era para dois ou três funcionários, acaba sendo feito por um só, fazendo esse problema da população de ver a gente com maus olhos. O serviço acaba não saindo bem feito porque estamos sobrecarregados. Já foi muito bom, como era uma das melhores empresas. Funcionava certinho, hoje em dia deixa muito a desejar e o pessoal acha que sempre a culpa é do carteiro. É a gente que tá no dia a dia de frente com o público e acaba ouvindo as coisas [reclamações]. Na verdade, quem faz as cagadas são pessoas lá em cima mesmo. A gente tenta fazer o nosso melhor mas, infelizmente, como levamos o nome da empresa acaba sobrando pra nós”. 

Na maioria das reclamações, acabava não discutindo e poucas foram as vezes que teve uma desavença com alguém. Conquanto, tem uma que gosta de lembrar:

História em quadrinhos disponível aqui.

Possíveis modelos e consequências da privatização 

Sob o comando de Paulo Guedes, o Ministério da Economia divulgou no final de julho, o segundo Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais (RAEFF), que traz dados das 46 empresas controladas diretamente pela União no exercício de 2020. Através de um balanço financeiro, o relatório aponta que as estatais tiveram resultado líquido positivo de R$ 60,6 bilhões no ano passado. O faturamento total das companhias com o reajuste do patrimônio líquido foi de R$ 768,8 bilhões e os ativos totais somaram R$ 5,3 trilhões. Apesar do saldo positivo, dos R$ 19,4 bilhões investidos nas empresas totalmente dependentes do Tesouro Nacional, apenas R$ 5,4 bilhões em dividendos foram devolvidos para a União no ano passado.

O secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Diogo Mac Cord,  avalia o RAEEF como a demonstração de que as estatais “emperram” o desenvolvimento do país: “É importante entender que a forma de enxergar isso é a parcela do PIB que foi sequestrada por estatais e que não conseguimos desenvolver”. A avaliação do secretário é uma justificativa para a privatização das empresas públicas, prometida a todo instante pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo Ministro da Economia Paulo Guedes. 

Entre os argumentos do Governo para a venda dos Correios está a incerteza quanto à auto suficiência e à capacidade de investimentos futuros e não é uma empresa rentável. Porém, no último mês de maio foi registrado o maior lucro dos últimos 10 anos, atingindo R$ 1,53 bilhão. “A proposta atual de privatização não tem muito a ver com o rendimento da empresa, mas esse fator de ser lucrativo não é impeditivo de um projeto de privatização. Ele está amparado em outras lógicas, em outros objetivos que não é simplesmente dar sustentabilidade financeira com a empresa” explica Venceslau.

Conforme explica o pesquisador, as privatizações impostas no Brasil estão bastante amparadas no ideal neoliberal de que o Estado deve ser apenas regulador, independente da atividade ser lucrativa ou trazer algum benefício para a população. “O ministério já foi montado com essa ideia de que o Estado precisa abrir mão de ser executor e precisa ser apenas regulador. Então, claro que há riscos nesse modelo, há justificativa que há uma extrema afinidade entre a política e economia hoje no Brasil, que visa privatização, e com essas ideias que buscam o Estado mínimo apenas como regulador, diz.

Com o assunto em pauta a todo momento, o Ministério da Economia utiliza argumentos para justificar a privatização, até mesmo mentirosos. “Primeiro falaram que os Correios davam prejuízo, mas foi demonstrado que isso era mentira. Os valores que a empresa apresentou nos últimos quatro anos deram lucro. Depois, começaram a falar outras coisas até chegar na falta de condições para fazer os investimentos de modernização.Isso é outra mentira” ressalta Marcos César. Igor também rebate o discurso governista, porque está sendo reverberado pelos agentes do mercado, ou seja, aqueles que estariam de alguma maneira interessados na privatização que poderiam comprar a empresa ou outros benefícios indiretos. O próprio Ministério da da Economia fala disso, mas não apresenta um plano que deixe claro para a população o que seria a modernização.

Enquanto essa matéria foi produzida, a novela da privatização adiciona novos capítulos a cada mês. O presidente da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado , Otto Alencar (PSD-BA), disse que mesmo senadores favoráveis ​​à privatização dos Correios não querem assumir uma relatoria do projeto que trata da quebra do monopólio da empresa nos serviços postais. Segundo Otto, os únicos nomes interessados ​​em conduzir como responsáveis pela privatização são os líderes do governo: Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-PE). Um dos motivos para essa resistência é o fato de os Correios serem lucrativos e uma das empresas com maior número de trabalhadores empregados, num cenário de desemprego constante. Otto disse também que a bancada do PSD se reuniu para discutir o assunto nos últimos dias e muitos senadores manifestaram contrariedade com o texto. O próprio presidente da CAE já disse, recentemente, que este “não é o melhor momento para uma privatização”.

Pelo calendário do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a aprovação do projeto pelo Congresso precisaria ocorrer em agosto para que o leilão fosse feito pelo governo em abril. O projeto autoriza a venda de 100% dos Correios em leilão. Inicialmente, o governo cogitava lançar ações em bolsa e ficar com parte do capital da empresa, modelo que repetiria o da Petrobras e da Eletrobras, mas desistiu após avaliar que isso diminuiria o interesse privado pela estatal. Além do Congresso, as regras da operação também precisam passar pelo aval do Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual o governo espera submeter o modelo de venda em dezembro.

Dados compilados pela Associação dos Profissionais dos Correios (ADCAP) demonstram variação dos resultados da empresa, sem subsídios federais do Ministério da Economia. Gráfico cedido pelo vice-presidente da entidade Marcos César Alves Silva

Marcos César Alves Silva, é Administrador Postal formado pela Escola Superior de Administração Postal. Trabalhou por 37 anos nos Correios, onde exerceu diversos cargos executivos, sendo o último deles o de conselheiro no Conselho de Administração, no período de 2013 a 2018. Silva afirma que o prejuízo de 2013 a 2016 não foi por roubo ou má gestão. Ele atribui o resultado a ações do Ministério da Economia no período, como congelamento de tarifas, retirada de dividendos do caixa da empresa e uma mudança contábil exigida no relatório financeiro. “Os Correios são o grande troféu ideológico do governo, que só fala mal da empresa, o que tende a baixar seu preço. Não precisamos do Tesouro. É quase criminoso fazer isso”.

Ao contrário do discurso governista, não existe o “subsídio” entre o governo e a estatal, como o serviço de transporte coletivo de São Paulo, onde a SPTrans atua junto com as empresas de transporte para não aumentar o preço da passagem. Igor esclarece que o monopólio postal, geralmente, é confundido com subsídio. Com isso, a receita gerada é proveniente das taxações do próprio serviço, considerada bem abaixo da média mundial de tarifas pela União Postal Universal.  É a única empresa de logística, transporte, logística, que está presente em todos os municípios brasileiros. Então, imagina, isso pra uma empresa de comércio eletrônico, por exemplo, é um grande diferencial competitivo. 

No que se refere à infraestrutura e os investimentos necessários para mantê-la, já existe uma infraestrutura montada e em pleno funcionamento. Os investimentos necessários se destinam, portanto, à manutenção dessa infraestrutura já existente e à sua ampliação. Segundo Marcos, os problemas apresentados pela empresa podem ser facilmente resolvidos: Falta de pessoal? Dá para resolver com mais contratações abrindo concursos públicos! Falta veículos para as entregas? Prioriza a manutenção preventiva nos que já existem e compre carros novos, por exemplo, entre 2019 e 2020 antes da pandemia, 7.000 veículos novos foram adquiridos. Falar que os Correios estão precisando de modernização é uma falácia, pelo fato da iniciativa privada apostar na terceirização, mesmo que signifique uma precarização das condições trabalhistas. 

Na realidade, os Correios não são um órgão público calafetado. A empresa constitui o núcleo de um ecossistema empresarial que já conta com a parceria de entidades privadas para levar o serviço postal aos brasileiros. São quase 1.000 agências franqueadas, transportadoras e fornecedores. “Um sistema grande e complexo, mas que funciona integrado e regularmente, empregando centenas de milhares de trabalhadores direta e indiretamente. E volto a frisar: sem depender do Tesouro Nacional”. Marcos completa.

Atividades de logística exigem uma modernização constante porque são serviços com fluxos informacionais. “Uma encomenda dos Correios, tem rastreamento e exige investimento constante em tecnologia. Softwares, hardwares, a própria tecnologia que envolve leitores de código de barras, os carteiros com smartphones para que possa, no momento da entrega, atualizar o do pedido e aparecer como entregue. Coisas assim, exigem investimento e infraestrutura. Mas os correios brasileiros, em comparação com outras empresas postais no mundo, são uma das mais modernas. O rastreamento de entrega, por exemplo, é uma coisa muito antiga no Brasil”, explica Venceslau.

Vale lembrar que o desmonte que vem ocorrendo na estatal não teve início no governo atual. Para Igor “Uma coisa é a privatização,que seria a última consequência, outra é a precarização, que é o processo impulsivo. Essa precarização que está em andamento tem várias consequências além do serviço precarizado”. Essa precarização ocorre com a sobrecarga de serviços por causa da falta de funcionários, seja por causa da suspensão de concurso público (o último foi realizado entre 2012 e 2013), processos de aposentadoria e planos de demissões. Segundo Marcos “há um monte de lacunas que não foram cobertas simplesmente porque a direção da empresa não contrata pessoas. 

Então a pergunta é: Como que uma empresa lucrativa,  num ambiente e conjuntura dessa, em um extraordinário crescimento de comércio eletrônico na pandemia pode alegar não ter condições de, por exemplo, abrir vagas de concurso, investir mais em infraestrutura garantir os prazos de entrega, pelo menos, naqueles lugares que precisam de suporte?

No momento em que o governo federal tenta, a todo custo, colocar em marcha um processo de privatização, é importante que se tenha em mente que, como acontece com a Embrapa [desmonte de seus centro de pesquisas e alinhamento com ruralista], os resultados dos Correios vão muito além dos números de seus demonstrativos financeiros e estão materializados no bem-estar e no desenvolvimento econômico dos brasileiros. E isso tem muito valor.

Até o momento, a Secretaria Especial de Desestatização deseja leiloar 100% do capital da empresa, mas ainda não definiu qual será o formato de privatização. O presidente Jair Bolsonaro também anseia cumprir sua promessa eleitoral através do Projeto de Lei 591/2021 (PL 591/2021) apresentado em 24 de janeiro deste ano, que está nas mãos de Arthur Lira, presidente do Congresso.  Entre as propostas estão a venda da empresa inteira, separação por tipo de serviço ou por regiões ou se a própria União manterá para si uma parte dos serviços, chamada na proposta de “serviço postal universal”, que incluirá encomendas simples, cartas e telegramas. Já outros serviços, em grande parte encomendas, devem ser atendidas pela iniciativa privada. 

Atualmente, a estatal atua no envio de cartas, telegramas e grandes programas de governo que são viabilizados pela infraestrutura disponível. Nessa vertente, temos, por exemplo, a distribuição de livros didáticos, das provas do Enem, das urnas eletrônicas e de medicamentos, programas de grande impacto na vida das pessoas, que acontecem sistematicamente, sem problemas para o governo, que conta com a complexa logística dessas operações. O serviço postal está previsto no artigo 20 da Constituição Federal e é de responsabilidade da União a manutenção do serviço postal. Por isso, o modelo de privatização mais possível é o contrato de concessão para que o setor privado possa ter o controle total do serviço de encomendas. O serviço postal, em função de sua natureza claramente pública, vem destacado na Constituição Federal, separado de outras atividades em que se prevê a possibilidade de exploração por meio de autorização, concessão ou permissão. “Esta questão não pode ser relevada, porque fere de morte a PL 591/2021, trazida à apreciação do Congresso Nacional”, Marcos diz.

Foto: Correios
Aprendendo com as lições de fora

Manter o serviço postal no quinto maior país do mundo não será tarefa fácil, já que o Brasil tem 5.568 municípios espalhados em 8.515.767 km². Ainda não está claro como o governo pretende lidar com a universalização. Uma das maiores críticas de setores contrários à privatização é a falta de interesse de grupos privados em áreas remotas e com baixo retorno financeiro, porque o lucro foi registrado somente em 324 cidades.

As cidades se conectam segundo uma hierarquia, uma lógica. Isso é válido para todos os serviços postais existentes, como Igor Constatou em seu mestrado. O sistema de logística e transporte hierarquiza os municípios conforme a população, distância e importância geoeconômica, cria um planejamento e define localidades centrais. Com a convergência dos centros de distribuição,o entorno terá uma entrega veloz com menos etapas. Esse modelo de hierarquização busca racionalizar o processo, ou seja, no caso dos correios, prazos mais rápidos de entrega, com um custo menor. 

Não por acaso, nos 20 maiores países do mundo em extensão territorial, os correios são públicos. Marcos explica que o Brasil tem imensas assimetrias que favorecem a pobreza e a exclusão, problemas que os governos precisam enfrentar para criar esse tecido que chamamos de nação. “Não somos uma Alemanha, uma Bélgica. Somos um país que tem brasileiros humildes instalados em regiões pouco assistidas, os quais têm nos Correios, no carteiro de azul e amarelo e bandeira no ombro do uniforme a mais próxima presença física do Estado”. 

Além da entrega de postais e encomendas, a empresa também atua com entrega de livros didáticos, distribuição de televisores digitais em lugares remotos e banco postal por quase duas décadas. Em sua história recente, também divulgou campanhas em prol do aleitamento materno, campanhas sociais e patrocinou as equipes brasileiras de Esportes Aquáticos, handebol e tênis até as Olimpíadas de 2016. “No Brasil, o caboclo que, com sua presença nos rincões, garante a nossa soberania, tem o mesmo direito do empresário ou executivo de uma grande empresa na cidade de São Paulo. Ambos têm seu papel e sua importância na integração nacional e no desenvolvimento do país e precisam dispor de um bom serviço postal”. 

De modo geral, é possível analisar os correios estrangeiro categorizando entre os que possuem mercado liberalizado e os que mantêm monopólio do Estado para correspondências regulares, como o caso brasileiro. Pela PL em discussão, caberia à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) a fiscalização do serviço.

Alemanha, Áustria, Reino Unido, Portugal e Bélgica possuem extensão territorial pequena, com agências postais liberalizadas, possuindo uma pequena participação ou regulação do Estado. Enquanto isso, Estados Unidos, Canadá, Japão e Austrália são definidos por uma agência reguladora designada a assegurar o cumprimento do serviço universal. 

Nossa vizinha Argentina possui um caso peculiar, cuja empresa postal era privada e decretou falência no início deste mês, não está na amostra. A concessão do serviço à iniciativa privada ocorreu através de um pacote de privatizações realizadas pelo presidente argentino Carlos Menem, em 1997. A partir disso, o Correo Argentino S/A ficou nas mãos da Socma (Sociedade Macri), da família de Mauricio Macri, presidente do país entre 2015 e 2019. Esse controle durou até a reestatização dos correios, e resultou em um rombo de US$ 300 milhões, junto com a falência da empresa. No governo de Néstor Kirchner, em 2003 o Estado argentino retomou os serviços postais com o Correio Oficial da República Argentina S.A. (CORASA).

Se nos filmes e séries estadunidenses as transportadoras são comuns, a realidade é um pouco diferente: a obrigação de normas técnicas para o desempenho do operador responsável pela universalização é do USPS (sigla para United States Postal Service, serviço postal público). Os Estados Unidos decidiram não tirar o monopólio do USPS, fundado em 1775. As competidoras privadas até podem ofertar os serviços básicos, mas somente com preço superior ao da estatal. Elas acabam sendo comuns porque oferecem um serviço considerado mais rápido e confiável. A estimativa é que a estatal americana detinha 20% do mercado de entregas. 

Entre os modelos privatizados, o da Alemanha é considerado o mais bem-sucedido entre especialistas, contrastando com Portugal, cujo preço das tarifas foi limitado pelo governo. O exemplo português é considerado uma má gestão, com demissões em massa, perda da universalidade territorial, fechamento de unidades e baixa atratividade a investidores. Em contrapartida, na Alemanha, o operador universal é privado, mas com participação estatal, que supervisiona o serviço. A privatização foi gradual, com início em 1989. O país decidiu que não era necessário ter reserva de mercado, mas mesmo assim a estatal Deutsche Bundespost, hoje a DHL (privada), que recebeu subsídios até meados dos anos 2000.

Transformação sob encomenda

A chegada de uma nova tecnologia colocaria fim a outra. Quando o telefone foi inventado, as cartas morreriam em pouco tempo. Com a chegada da televisão, o rádio morreria em pouco tempo. Com a chegada da internet, as cartas, o rádio, a televisão e o jornalismo morreriam em pouco tempo.  A internet ia substituir os Correios. Os Correios não são coisa do passado e se mostraram uma atividade essencial.

“Muito embora as atividades dos terrenos mais tradicionais sejam sempre um convívio, uma transformação, elas nunca desaparecem também. Ainda não tem o modelo que substitui isso e a gente acaba”, finaliza Igor.

Como testemunha ocular de tudo que passou pela história brasileira, as cartas e as encomendas já viram nascer e morrer incontáveis tecnologias. Incorporou em suas operações e negócios as tecnologias mais promissoras. A internet nos seus primórdios era vista como o fim dos Correios, e agora é utilizada intensivamente auxiliando os meios digitais em inúmeros serviços, sem contar que trata-se da base onde roda o comércio eletrônico. “Não procede, portanto, o velho e falso discurso de que as novas tecnologias ameaçam o negócio postal. Os números demonstram avanços e a estrutura montada permite os ajustes pontuais, São, na verdade, grandes oportunidades para alavancar os negócios da Empresa”, finaliza Marcos.

Por Beatriz Cristina / beatrizcristina.sg2000@usp.br