Entre o crime e a psicopatologia: o nebuloso campo de estudo da pedofilia

Encontrar a frase “Pedofilia é crime” estampada pelas ruas não é incomum, quer seja por ação governamental, a exemplo das prefeituras de Ipatinga (MG) e Paranaguá (PR), quer seja por anúncios e outdoors. Não raro, os dizeres tomam o lugar de avisos de segurança e de mudanças de trajeto em linhas de ônibus paulistas. Na era das fake news, vira-e-mexe são distorcidos para manchar reputações de políticos, e governantes e civis os replicam por aí. Há um porém: embora amplamente difundida, a criminalizaçao da pedofilia não é consenso mesmo entre os estudiosos do assunto. Tem quem diga que, na verdade, a violência sexual contra crianças e adolescentes é um quadro de psicopatologia.  

Nebuloso, complexo e espinhoso, o tema esbarra não só no senso comum ou em meias-verdades, mas em tabus que dificultam sua discussão ampla Brasil afora. Diante desse cenário de incertezas, pesquisadores têm feito um esforço para buscar aprofundamento e formas melhores de lidar com o transtorno pedofilico, na tentativa de esclarecer conceitos para a população.

Definição 

Ainda é difícil estabelecer uma definição exata para a pedofilia –  os próprios pesquisadores detêm de visões variadas sobre o conceito. É possível afirmar com certeza, no entanto, que pedofilia não é crime. Nas palavras de Jéssica Pascoal, mestra e doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, não existe na jurisdição algo que enquadre o transtorno pedofílico como uma violação do código penal: “Na verdade, o que existe são crimes que podem ser relacionados ao comportamento que o pedófilo pode eventualmente ter.”

Há no Código Penal, por exemplo, o crime de estupro de vulnerável, associado, em geral, a menores de 14 anos, além de outros pontos importantes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ‒ lei que prevê egramento especial para a proteção de crianças e adolescentes, e tem questões relacionadas a aspectos criminais. Consumo, venda e produção de material pedo-pornográfico, a pornografia infantil, por exemplo, são enquadrados como atividades ilícitas, bem como a tentativa de aliciar crianças para fins sexuais e/ou abusar sexualmente delas por meio de facilidades oferecidas por redes de computadores, o chamado grooming

Se a pedofilia não é um crime, como podemos então defini-la? 

Na visão do doutor em Sociologia e professor da Missouri State University, Herbert Rodrigues, existem atualmente quatro possibilidades de definição. A primeira é a histórica, originada na Grécia Antiga: a origem da palavra vem do contato entre um homem mais velho, o tutor, com seu pupilo. Dessa relação de amor surge a junção das palavras pedo, que significa criança, e filia, que exprime significado de afeição. Tal ideia, entretanto, não existe mais, e o que restou foi apenas a expressão. 

A segunda possibilidade é a médico-psiquiátrica. “No século 19, com o desenvolvimento da medicina, da psiquiatria e do estudo da sexualidade humana, surgiram os primeiros trabalhos que buscavam caracterizar o comportamento sexual das pessoas.” Naquela época, porém, qualquer comportamento que não fosse heterossexual e não tivesse finalidade de reprodução era considerado desordem mental, de maneira que a lista possuía centenas de “anormalidades” – entre elas, a pedofilia. Essa foi a primeira aproximação que a ciência médica e psiquiátrica fez do assunto, mas, de lá para cá, os conceitos foram profundamente transformados. 

Hoje, ela é definida como “o interesse sexual predominante por crianças e pré-púberes, manifesto por fantasias, impulsos ou comportamentos intensos e recorrentes”, explica Marco Scanavino, médico, professor e responsável pelo Ambulatório do Impulso Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Quando se considera que há um quadro clínico instalado e urge a necessidade de tratamento, passa a ser um caso de Transtorno Pedofílico – transtorno mental listado no DSM 5, o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria para definir como é feito o diagnóstico dos casos. 

A terceira possibilidade seria a definição jurídica da questão. Quando se começou a perceber que o abuso sexual infantil era um gravíssimo e frequente problema social, houve a necessidade de elaborar um tratamento jurídico para dirigir-se a ele de forma adequada. “Houve o desenvolvimento de ideias, por exemplo, de idade mínima para consentimento. Isso já é uma maneira de tentar definir os critérios de uma sexualidade considerada normal”, afirma Herbert Rodrigues. “Ou seja, é o próprio Direito buscando definir parâmetros para caracterizar a pedofilia.” 

A quarta e mais recente possibilidade mistura os campos de psiquiatria e direito, o que traz uma dimensão mais politizada do assunto. Herbert afirma que há uma preocupação política e moral da população com as crianças e com a sexualidade do adulto, de forma que sempre se visa estabelecer uma normatividade. Isso faz com que o tratamento do assunto vá além de uma desordem mental ou questão meramente jurídica, e se torne conduzido pelo Estado e julgado socialmente. Isso ocasiona, também, em uma certa conduta do indivíduo diante da sociedade. Ou seja, ele não pode cogitar a possibilidade de se relacionar com menores, porque “um homem adulto tem que ter uma vida sexual considerada normal”. 

Além dessas quatro possibilidades, o professor afirma que há também uma quinta, não tratada como definição, mas vista como uma outra perspectiva de entender o assunto: o senso comum. Com as definições da palavra perdidas ou distantes do conhecimento popular, se alimenta o debate no senso comum, alimentado pela mídia, em conversa interpessoais e no que cada pessoa acredita ser pedofilia. “É um grande problema porque tudo se torna bem nebuloso. As pessoas não sabem separar uma coisa da outra, então tudo pode ser considerado pedofilia”, afirma Herbert.

O Transtorno Pedofílico 

Apesar das multiplicidades do tema e dos tabus envolvidos, o Transtorno Pedofílico é um transtorno mental, e, como tal, tem sintomas essenciais para seu diagnóstico. Poder propriamente designá-lo é de extrema importância, porque é o que diferencia um pedófilo de um abusador.  

Marco Scanavino explica que, de acordo com o DSM 5, o diagnóstico requer sinais específicos. Além do interesse sexual predominante por crianças – a pedofilia propriamente dita –, é necessário apresentar sofrimento (a nível de ansiedade, culpa e outros sentimentos negativos relacionados), dificuldades em relacionamentos interpessoais e demonstração prévia de comportarmentos pedofílicos com crianças ou pré-púrberes. Também é necessário haver um mínimo de cinco anos de diferença entre a vítima e o adulto, que deve ter ao menos 16 anos de idade. 

“O consumo de pornografia envolvendo crianças também é um sintoma comum. Geralmente o indivíduo relata a percepção do interesse na adolescência”, afirma. 

O psiquiatra explica, entretanto, que a identificação do transtorno é difícil porque a busca espontânea por tratamento é baixa. Porém, “quando o paciente o procura, o histórico clínico permite identificar”. Em alguns países, são utilizados testes com alto poder indicativo de diagnóstico, como a pletismografia peniana ‒ que mensura o fluxo sanguíneo peniano quando o indivíduo é exposto a fotos de crianças ‒ e o tempo de visualização, que calcula o tempo em que se visualiza fotos de crianças nuas ou semi-nuas. 

A psicóloga Rose Miyahara, que atua no Centro de Referência a Vítimas de Violência e conduz uma pesquisa de doutorado sobre o assunto, afirma que, ao analisar a história dos sujeitos envolvidos neste tipo de abuso sexual, percebe-se um padrão. Geralmente, a pessoa possui ações que giram em torno de favorecer o contato com crianças e adolescentes, como se colocar como funcionário de uma instituição infantil, ou participar de atividades que envolvam crianças (em uma festa, por exemplo).

Outro fator de difícil entendimento, mas que continua a ser objeto de pesquisa, é como o transtorno se origina. O doutor Marco explica que tem sido observada uma relação direta do comportamento com o Transtorno de Personalidade Antissocial: “Isso sugere que a presença de condutas antissociais pode ser um fator significativo para o diagnóstico de Transtorno Pedofílico em indivíduos com predomínio dessas preferências sexuais”. 

Outra condição importante é a exposição a vivências sexuais na infância: ou seja, o indivíduo com transtorno pedofílico frequentemente apresenta histórico de ter sofrido abuso sexual quando criança. Além disso, recentemente ainda surgiram indícios da ocorrência de alterações no neurodesenvolvimento intra-uterino, que podem influenciar na manifestação do transtorno. 

Por causa disso, a caracterização de um pedófilo é diferente do ponto de vista psicodinâmico, segundo Rose Miyahara. A partir de uma amostra da pesquisa de campo realizada para sua tese de doutorado, a psicóloga percebeu que há uma porcentagem muito maior de pacientes que não podem ser caracterizadas como pedófilos, já que a maioria não tem as características específicas, mas, invés disso, apresenta contextos sociais e familiares que favorecem esse tipo de relação. Assim, há uma transmissão geracional – como uma espécie de marca transmitida por famílias – do abuso sexual como método de lidar com situações problemáticas, a modo de punição. Isso, por sua vez, resulta em outro grave problema: a omissão dos familiares sobre casos de abuso. Sem a discussão ou sequer elaboração do assunto, é criado um ciclo em que apenas se repete o que foi vivido. 

Rose explica, também, que há uma confusão de linguagens entre adulto e criança: “A criança ou o adolescente vai naturalmente buscar um adulto, procurando uma troca de ternura. Invés disso, recebe uma resposta erotizada”.

O sociólogo Herbert Rodrigues, no entanto, entende de outra forma: na visão dele, não existem fatores sociais que influenciam a pedofilia. Ele relata que, a exemplo de países que têm dados e estatísticas sobre o assunto, como Canadá, EUA, Holanda, “perceberemos que não existe nenhum fator social, ambiental, racial ou mesmo de orientação sexual que explique isso, apesar de existir um fator de gênero forte”. O que existe é uma diferenciação na punição a depender da posição social – o que, para ele, seria uma segunda face de análise sociológica do tema. 

Jéssica Pascoal reforça que as pesquisas clínicas sobre o assunto não estabelecem um recorte de classe para este transtorno mental específico: ele pode atingir a todos, independentemente. Ela concorda que a seletividade acontece muito mais na parte punitiva da questão, mas essa diferenciação começa muito antes do processo de julgamento. Assim, dependendo do poder aquisitivo do indivíduo, o caso pode ter uma condução bem diferente. “É muito fácil conhecer e saber o que acontece no barraco vizinho. Todo mundo mora junto e misturado, não tem muito uma separação de espaços privados e preservação do que acontece dentro das residências. Mas, em uma cobertura no Jardins, por exemplo, o que acontece lá dentro é desconhecido.” 

Ela explica que na criminologia existe um termo chamado de cifras ocultas, que são crimes que ocorrem sem que a polícia tome conhecimento, e o judiciário menos ainda. Para alcançar o âmbito jurídico são vários filtros, desde a decisão de fazer a denúncia até a de levar o processo adiante, de forma que só são julgados os casos que conseguiram vencer todas as barreiras. Neles, geralmente, se observa uma vulnerabilidade maior dos envolvidos. “Não dá pra afirmar, pelo desfecho final de um processo no qual vários fatores interagiram, que o abuso acontece mais especificamente em determinado grupo social, porque os casos revelados são justamente aqueles que passaram por todo o tipo de funil que existe até chegar no judiciário.”

Tratamento 

Assim como os diversos transtornos mentais que existem, o Transtorno Pedofílico também possui tratamentos. O mais comum deles, como explica o doutor Marco, é baseado no uso de medicamentos e psicoterapia. Ele esclarece que, no Brasil, se utilizam predominantemente antidepressivos que regulam, em parte, o comportamento sexual. “Estabilizadores de humor e antipsicóticos também podem ser utilizados dependendo das características clínicas. Além disso, a psicoterapia cognitivo comportamental e a psicodinâmica são duas das modalidades mais recomendadas.”

Marco explica que a terapia cognitiva comportamental vai trabalhar os pensamentos disfuncionais e os comportamentos desadaptativos, ou seja, temas e crenças estáveis, elaborados ao longo da vida e significativamente disfuncionais. Já a psicodinâmica aborda os conflitos inconscientes, conectados aos sintomas dos problemas. A melhor forma de buscar tratamento, portanto, seria através de profissionais de saúde mental. “Os hospitais-escolas, em geral, contam com profissionais familiarizados com cuidados de pacientes com dificuldades sexuais.”

Rose afirma que, entretanto, em seus atendimentos voltados para pesquisa, o grupo de estudos procura trabalhar além das metodologias tradicionais. O tratamento, assim, também é levado para o lado terapêutico, que exige do sujeito um contato com o núcleo mais interno de si mesmo. Isso apenas ocorre quando há uma demanda própria do paciente – quando ele entende os benefícios que a terapia pode trazer. 

A psicóloga explica, entretanto, que esse processo é difícil, já que, na maioria das vezes, a pessoa não busca o tratamento em virtude do estigma e do medo da recriminação, de forma que a maior parte faz terapia por obrigação judicial. Diante desse cenário, a primeira função do profissional é reverter o sentido que o paciente dá ao tratamento e mostrar a ele que não deve ser realizado apenas por ser compulsório, mas por trazer amplos benefícios. 

Criminalização 

Se o Transtorno Pedofílico é considerado um transtorno mental, por que a ideia tão difundida de que a pedofilia é crime?  

Herbert explica que houve um processo para criminalizar a pedofilia no Brasil, empreendido pelo Estado e pelo sistema de justiça nos últimos 20 anos. Em seu livro-tese “A pedofilia e suas narrativas, uma genealogia do processo de criminalização da pedofilia no Brasil“, ele investiga como a categoria do domínio médico-psiquiátrico tem sido levada a âmbito criminal. Analisando o arquivo de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o sociólogo observou que a primeira vez que o conceito de pedofilia foi utilizado para qualificar um crime, e levar o juiz a elaborar a sentença com base nesse argumento, foi entre 1997 e 1998. 

Desde então, há marcos na legislação que buscam criminalizar a categoria, como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, datada de 2010. Nela, o próprio Estado utiliza o conceito de forma criminalizada. “A partir dos resultados desta CPI, há um aumento, no sistema de justiça, da tentativa de operacionalizar essa categoria, que, até então, era vista como médica. Ela passa a ser uma chave importante para caracterizar o crime.”

Herbert afirma que, neste processo, muita coisa acaba sendo misturada: “por exemplo, exploração sexual, incesto, prostituição infantil, pornografia, tudo acaba virando a mesma coisa”. Ele é crítico da abordagem feita do assunto, já que, apesar da aparente preocupação com o desenvolvimento sadio da criança, não há propostas ou políticas públicas voltadas especificamente para a infância e a adolescência. “Quando essa questão aparece, é no grande chapéu da educação. Por que isso não aparece na agenda e no debate? Por que há essa ausência?”

O processo jurídico

A doutoranda em Direito, Jéssica Pascoal, explica que, quando alguém é condenado pelo juiz, existem dois tipos de desfecho: absolvições própria e a imprópria. “Diferente da absolvição própria, que não tem consequência de sanção nenhuma, a imprópria tem imposição de medida de segurança.” 

Assim, quando o indivíduo recebe uma sentença que impõe uma medida de segurança, ou essa sanção será cumprida no que a Lei chama de tratamento ambulatorial, um tratamento em liberdade com consultas periódicas, ou ele será internado em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, que são os antigos manicômios. A doutoranda afirma que a segunda opção é a mais comum. 

Além disso, existe uma outra classificação pela qual o indivíduo julgado pode passar. Nela, o caso pode ser considerado imputável, inimputável ou semi-imputável – desígnios para atribuir, ou não, autoria e responsabilidade por um crime. De acordo com Jéssica, se uma pessoa não possui transtorno mental algum e comete um delito, ela tende a ser considerada imputável, ou seja, passível de receber pena. “Se ela tiver um transtorno mental que de alguma forma comprometa ou se relaciona significativamente com a capacidade dela entender que aquilo é proibido e que deve se comportar de acordo com esse entendimento, a lei vai dizer que essa pessoa é inimputável. Então ela não pode receber pena.” Assim, ela será sancionada com a medida de segurança, caso receba absolvição imprópria. 

Existe, porém, uma categoria intermediária, a semi-imputabilidade. Aqui,  o indivíduo não é nem completamente imputável, nem inimputável, ou seja, tem um distúrbio psíquico que atinge suas capacidades de entendimento, mas que não interfere de forma tão significativa como é o caso do inimputável.

Nesse cenário, a Lei prevê duas possibilidades: ou o indivíduo recebe uma pena de prisão atenuada, já que a semi-imputabilidade é causa de diminuição de pena, ou a medida de segurança, quando houver a necessidade de um “tratamento curativo”. Jéssica, entretanto, afirma que essa é uma impropriedade da Lei, que fala em cura e não em tratamento. “Muitos transtornos mentais, inclusive, não têm cura, mas têm tratamento. A pedofilia é um deles, não tem cura, mas tem um tratamento possível.”

Toda essa classificação, entretanto, só poderá ser aplicada caso o juiz decida instaurar um incidente processual, chamado incidente de sanidade mental, no qual abre-se um processo e é feita uma perícia. Nele, se verifica se há a presença do transtorno, e defesa e acusação fazem perguntas técnicas para saber se, caso venha a ser condenado, pode receber uma pena comum. Caso não, recorre-se à aplicação de medida de segurança. 

Entretanto, Jéssica afirma que, até 2014, situações assim eram raras. “Crimes sexuais praticados contra criança e adolescente dificilmente cogitam a possibilidade de estar diante de um caso de transtorno pedofílico. Ainda há uma certa resistência por parte dos próprios operadores do direito de conhecer melhor esse transtorno”, explica. 

Na opinião dela, isso se deve, principalmente, ao fato de que a pedofilia foge do que é entendido sobre transtornos mentais. “É mais comum vermos medidas de segurança, sobretudo de internação, aplicadas a transtornos como esquizofrenia ou alguma deficiência intelectual que a pessoa porventura pode ter. Esses são simbólicos do que é entendido por loucura, mas o pedófilo é, do ponto de vista social, funcional sob muitos aspectos.” Na maior parte das vezes, o juiz determina a internação ou o tratamento ambulatorial com base em critérios da Lei. Assim, algumas vezes, a equipe clínica que recebe o sujeito pode entender que a medida imposta deveria ser outra.

Isso ocorre principalmente em casos de internação em hospital de custódia, já que existe uma lei chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.206), também conhecida como Lei da Luta Antimanicomial, que atesta que as internações devem ser excepcionais, ou seja, só devem acontecer quando todos os recursos extra-hospitalares não foram bem sucedidos. 

A internação também deve ter uma indicação clínica. Isso significa que o juiz não deveria tê-la como regra geral, além de precisar de um respaldo médico para tomar essa decisão. Jéssica ressalta, entretanto, que isso é comumente ignorado: há uma resistência muito grande por parte dos operadores do Direito em entender que essa lei é aplicável à área criminal. Na visão da doutoranda, eles deveriam se aprofundar mais nas possibilidades e peculiaridades de cada caso, além de compreenderem que a definição do tipo de tratamento deve partir de uma equipe clínica especializada. “A condução de um tratamento na área da saúde mental depende muito do envolvimento de um grupo de pessoas que vão pensar nas diferentes demandas que esse indivíduo pode ter, para que o caso evolua bem. É um fenômeno muito complexo.” 

Ela defende, ainda, que esses casos devem ter uma abordagem interdisciplinar, com a interação de profissionais de áreas diferentes. “Quando existe uma equipe interdisciplinar, que pensa no caso conjuntamente, a condução é muito mais sofisticada, muito mais complexa”. A mudança dessa conjuntura vai muito além do Direito, já que o juiz traz para o processo sua percepção moral e está, assim como qualquer outro, muito sujeito às percepções da sociedade sobre o assunto. 

Retratação 

A forma como a pedofilia é retratada na sociedade e o tabu que a envolve são fatores que contribuem para a visão distorcida sobre o assunto. Herbert explica que o primeiro fator que sustenta essa interpretação é o regime patriarcalista no qual o Brasil está inserido. Há uma ideia de que o homem detém o poder e a propriedade de todas as coisas que possui e, por isso, pode fazer o que quiser com aquilo que o pertence. As mulheres são vistas como propriedade – consequentemente, as crianças também. 

O segundo fator é a configuração do conceito de criança. O Brasil é um país majoritariamente católico, de forma que a construção social de criança passa pela ideia de pureza, de que são anjos intocáveis, trazendo a imagem de inocência. Desse modo, é impossível pensar na possibilidade de qualquer contato com crianças, e qualquer ideia relacionada à sexualidade é silenciada. As pessoas se calam a respeito deste assunto, e é assim que surge o tabu. 

Tudo isso é sustentado pela entidade da família. O que acontece dentro do escopo familiar dificilmente reverbera para outros, e não se toca no assunto porque existe a possibilidade de destruí-lo. Em uma sociedade ainda muito dependente de seus chefes de família, essa possível destruição tem valor muito significativo. “Isso repõe o tabu eternamente. Ele se perpetua, afeta a nossa sociedade e tem consequências graves, porque a medicina e a justiça também são formadas por pessoas que pertencem a essa sociedade”, afirma o sociólogo. 

Apesar das múltiplas visões sobre o caso, um ponto com o qual todos os pesquisadores e especialistas concordam é a necessidade de expandir o olhar para a pedofilia além da criminalização, pensando também em prevenção.

“A abordagem da pedofilia no Brasil se dá de maneira criminal e punitiva. Se a ênfase é essa, é levado em consideração que o fato já ocorreu e se ignora a prevenção”, explica Herbert. Para ele, a visão dada ao assunto impede que enxerguemos outra possibilidade: ao tirar a ênfase da punição,  pensa-se de que há cumplicidade ou conivência em relação ao abuso. Isso, evidentemente, não é verdade. 

Para a psicóloga Rose Miyahara, o que é desejado é uma aposta na responsabilização, mas em um contexto que realmente promova a possibilidade de tratamento, para que o sujeito possa rever suas ações e entender, inclusive, os motivos delas. “É necessário ter um olhar que não apenas criminalize, mas canalize também a possibilidade de encaminhamento desse sujeito para um tratamento.” 

Herbert afirma que a questão preventiva deveria levar em conta dois aspectos. O primeiro deles é que o sujeito sofre desse problema psiquiátrico e, na maior parte das vezes, tem dificuldade em buscar ajuda. Com todo o tabu que engloba o assunto, existe o medo de ser julgado e criminalizado. Para que ele tenha a quem recorrer, é necessário que haja profissionais qualificados para ouvi-lo. 

O doutor Marco Scanavino afirma que, nos últimos anos, um número cada vez maior de profissionais da saúde têm buscado especialização na área do comportamento sexual. Isso amplia o conhecimento de problemas como o Transtorno Pedofílico, facilitando o reconhecimento de casos tanto pelos indivíduos, quanto pelos profissionais da área. 

Jéssica Pascoal, por sua vez, ressalta que o esclarecimento da sociedade também é fundamental para incentivar a busca por ajuda. Ela afirma que, em alguns países, existem anúncios que incentivam as pessoas a procurarem tratamento caso possuam pensamentos erotizados com crianças, dispondo um contato para o indivíduo buscar. 

O segundo aspecto da prevenção é a vítima: é necessário que haja mecanismos de proteção à criança e ao adolescente. Rose afirma que é necessário trabalhar, entre pais e educadores, formas de lidar com a questão e  de detectar sinais de alerta importantes. Mais do que isso, é preciso prepará-los para acolher relatos e sanar dúvidas que possam surgir. “Às vezes a criança fala e o adulto não está preparado para ouvir, e isso já estimula o tabu”, explica. A psicóloga afirma que também é necessário ensinar a criança a diferenciar um toque de afeto de um toque que gera desconforto, e cita o Projeto Tartanina, que elabora materiais que tratam o assunto em uma linguagem feita para crianças. Além disso, é preciso instruir os jovens acerca de sua imagem e exposição. Com as redes sociais, os adolescentes passaram a se expor mais, o que fornece pistas aos aliciadores. 

Também há, atualmente, uma hiper-sexualização perigosa da figura da criança. “A mídia coloca a menina no lugar da mulher de um jeito cada vez mais precoce. Isso funciona como um estímulo. A criança não tem noção do erotismo, então apenas repete aquilo que é aclamado pela sociedade”, afirma a psicóloga. 

Para Herbert, o empoderamento das figuras mais fracas – nesse caso, as crianças – também é essencial. Tanto para que elas possam se auto-representar, quanto para que suas vozes sejam ouvidas e levadas em conta. 

Para que tudo isso ocorra, entretanto, o primeiro passo é afastar o caráter punitivo que temos sobre a pedofilia. Afinal, para Jéssica, todas as pesquisas revelam que, quando se trabalha com essa chave da punição, aumenta-se significativamente a chance de cometer um novo crime. “Há uma defesa da sociedade sempre pelo aumento da punição como forma de prevenir casos no futuro, mas o que acontece é justamente o oposto. Isso não funciona”. 

Por Beatriz Crivelari e Tamara Nassif