Pelo direito de sonhar

cannabis-medicinal-maconha-canabidiol-Elsa Olofsson-Pixabay

Epilepsia, esquizofrenia, doença de Parkinson, doença de Alzheimer, isquemias, diabetes, náuseas, câncer, dores crônicas, imunodeficiências, distúrbios de ansiedade e insônia. Todas essas doenças são completamente diferentes, contudo, todas podem ser tratadas com o uso de medicamentos à base da Cannabis sativa, largamente conhecida como a planta da maconha. O plantio, cultura, colheita e exploração da erva são proibidos em todo o território nacional desde 1938. Foi só a partir de 2015 que a Anvisa começou a regulamentar o uso medicinal do canabidiol (CBD), substância central no uso medicinal da cannabis. Apesar da liberação, os altos custos e o preconceito ainda restringem os sonhos de milhares de pacientes que necessitam do CBD para melhorar sua qualidade de vida.

“As pessoas acham que a gente tá dando maconha ‘fumada’ para criança”, desabafa Fernanda Carina Cammarota Rodrigues, psicóloga e mãe do Miguel, de 12 anos, que faz uso do CBD. Ele é portador da síndrome de Down e da síndrome de Moyamoya, um distúrbio progressivo raro que afeta os vasos sanguíneos do cérebro, e pode causar desde dor de cabeça acompanhada de formigamento no corpo e paralisias transitórias, até epilepsia, crises convulsivas, movimentos involuntários e acidentes vasculares cerebrais.

Asmático crônico por conta de seu nascimento prematuro, Miguel teve uma vida difícil desde o primeiro dia, com idas frequentes ao hospital, como descreve sua mãe: “Era uma criança que, caso se agitasse a mais durante o dia, se brincasse um pouco mais, acabava a noite numa UTI. Por conta disso, acabou em um momento da vida tendo 17 especialistas cuidando dele”. Depois de perceber que os tratamentos tradicionais eram insuficientes para render ao seu filho o mínimo de condições de aproveitamento de sua infância, Fernanda descobriu no tratamento com canabidiol um aliado importante, e os resultados foram expressivos.

“As mudanças foram todas que você pode imaginar. Desde o ponto de vista físico. O Miguel tinha sete para oito anos e pesava 17 kg. Tinha muita dificuldade de ganhar peso. Hoje, ele tem 12 anos e tem 50 kg. É uma criança muito mais forte do ponto de vista físico, tem controle de sono melhor, diminuição dos movimentos musculares causados pelo AVC que ele teve. É uma criança hoje que consegue viver uma dinâmica de criança. Se ele brinca e joga futebol não acontece nada, coisa que antes a gente tinha muita restrição”, descreve.

A melhora da qualidade de vida dos pacientes é largamente reconhecida como o diferencial do tratamento com a cannabis. Isso porque o canabidiol pode substituir toda uma gama de medicamentos, como conta a nutróloga Dra. Paula Vinha, doutora (PhD) e mestre em Clínica Médica pela FMRP-USP. Como uma das pioneiras na prescrição de cannabis medicinal, ela relata o tratamento de uma paciente que vivia com dores constantes no corpo e enxaquecas, fruto da fibromialgia, e utilizava cerca de 5 analgésicos por dia.

‘Na primeira consulta dela, ela falou assim para mim: ‘Eu não sei o que é viver sem dor, eu não sei o que é viver descansada. Eu não sei o que é ser descansada. Eu não sei o que é ser uma pessoa sem dor. Às vezes, eu preciso dormir 15 horas no final de semana e eu acordo cansada’”, relembra a médica. Além das dores, o uso diário dos remédios tinha como efeitos colaterais úlceras gástricas e o risco de insuficiência renal.

De acordo com a doutora, o tratamento com canabidiol, mesmo com doses baixas, mudou drasticamente a vida de sua paciente: “Ela chegou no consultório e falou assim para mim: ‘Obrigada, você mudou a minha vida, sou outra pessoa’”. Com o CBD, as dores em repouso sumiram e as crises de enxaqueca deixaram de ser recorrentes.

“Isso para mim já vale tudo que eu estudei tudo que eu faço. Eu vejo todos os dias uma melhora, uma pessoa que se beneficiou e a família se beneficiando em volta. O marido dela foi junto na consulta para me agradecer porque a esposa dele estava nova. Desde que ele se casou, ele nunca conheceu a esposa dele sem dor e veio me agradecer porque eu trouxe a esposa dele de volta”, afirma.

O grande diferencial do CBD está justamente na mitigação de efeitos colaterais dos medicamentos tradicionais, já que o canabidiol tem como possíveis contrapartidas apenas a sensação de sonolência e a perda de apetite. Enquanto isso, outros medicamentos podem inclusive potencializar o surgimento de outras doenças. Apesar disso, a legislação vigente ainda é limitada, e coloca certas restrições para quem depende desse tratamento.

Nos termos da lei, para se importar o canabidiol o paciente precisa passar por seis etapas: a prescrição médica do tipo B (chamada “receita azul”), o cadastramento do paciente na Anvisa, a análise do pedido de uso, a autorização para importação por parte da Anvisa, a aquisição e importação do produto e, por fim, a fiscalização e liberação da importação pela Anvisa. Mais de 20 medicamentos já podem ser comercializados em farmácias, contudo, a oferta ainda é muito baixa, como conta a Dra. Paula Vinha.

“Você achar a cannabis em São Paulo é fácil. Quero ver você achar em uma cidade do interior do Brasil, na farmácia. Não vai achar. Quero ver um médico prescrever com uma receita azul um remédio desse no interior do Brasil. Não vai prescrever”, critica. A especialista também contesta a qualidade destes medicamentos. Segundo ela, parte dos fármacos disponíveis são de baixa qualidade e vendidos a preços muito altos. A depender do fabricante, os custos pelo frasco de 20ml a 60ml variam entre R$ 250,00 e R$ 2.500,00.

O Brasil soma hoje mais de 70,4 mil pedidos de importação, de acordo com dados da Anvisa de 2015 a 2021, número que tem crescido exponencialmente. Em 2017, 2.101 formulários foram preenchidos. Em 2021, o número é 15 vezes maior, com 32.416 liberações feitas pela agência.

Além disso, por meio de ações judiciais também é possível conseguir o medicamento através do Sistema Único de Saúde (SUS), mediante comprovação de renda e análise clínica de que nenhum outro medicamento seria capaz de substituir o canabidiol no tratamento. O plantio em casa para consumo próprio também pode ser conseguido por meio de ação judicial, com a emissão de um habeas corpus preventivo para o usuário. Entretanto, estes casos atualmente representam cerca de 200 pacientes em todo o Brasil.

Outro canal de distribuição do canabidiol é possível por meio de associações que conseguem disponibilizar o produto por meio de ações judiciais que permitem o plantio da erva, produção e distribuição dos medicamentos. Segundo o mapeamento da Kaya Mind, empresa criada para análise de mercado da planta, existem mais de 80 associações de cannabis no Brasil, espalhadas por diversos estados do país. Esse número, no entanto, não é o total absoluto de associações existentes, mas, sim, aquelas que foram possíveis de mapear até então. Além disso, apenas 6 delas têm a autorização plena da Justiça para produzir o canabidiol.

Por meio destas associações, que cobram mensalidades entre R$ 200 e R$ 400, o preço para adquirir o medicamento é menor, contudo, como o processo de produção não é industrial, a qualidade do óleo de CBD pode variar de acordo com diferentes produtores. “Cada associação tem um tipo de óleo diferente, toda vez que eu mudo o produto eu tenho que adequar a dose do paciente, porque um produto não é igual ao outro”, aponta Paula Vinha, que caracteriza o processo das associações como semi-artesanal.

“Imagina um vinho, se a gente faz um vinho que é Carménère, ele vai ter as características do Carménère. Às vezes você vai tomar o Carménère e ele vai te fazer bem. Se você tomar um Cabernet sauvignon, pode fazer mal. Eu passo mal com o Cabernet sauvignon, por exemplo. Então é assim. A cannabis tem muitas cepas e tem muitas variações. Depende do solo, da qualidade do ar, da qualidade da água, temperatura e maturação. Tem associação que faz um óleo mais diluído, mais em conta, que o paciente consegue comprar por R$ 200. Pode até fazer efeito para essa pessoa, mas para outra pessoa não faz efeito, então varia muito”, explica a nutróloga.

A contaminação do solo por mercúrio ou alumínio também é uma preocupação constante para quem usa o produto vindo das associações. Por isso, a doutora ressalta que prefere prescrever medicamentos vindos da indústria farmacêutica, com certificado de análise dos componentes. No entanto, a realidade financeira de boa parte dos pacientes não permite o acesso a estes medicamentos.

“Eu respeito as necessidades dos pacientes. Se não tiver outro jeito, vamos para o jeito que dá. É mais ou menos assim que funciona. Mas, eu preciso de uma certificação para me garantir que estou fazendo medicina corretamente. Tem muito paciente que compra óleo pela internet, no Mercado Livre, e ele recebe nada no frasco. Ele recebe azeite de oliva, ele recebe óleo de hemp seed, que não tem nada, que é para jogar na salada e não é medicamento. Aí você queima a possibilidade terapêutica de uma planta tão maravilhosa com um produto ruim”, alerta a médica.

Outro problema está na questão da dosagem. Hoje, por meio da importação um paciente consegue adquirir frascos de 10ml a 60ml por mês, a depender de sua necessidade. Contudo, pacientes que precisam de altas quantidades do remédio têm que recorrer à Justiça para aumentar a importação, isso quando não acabam impossibilitados de custear o tratamento.

A Dra. Paula Vinha conta a história de um paciente autista, de 12 anos, que vive em uma aldeia indígena e sofre da síndrome de Lennox–Gastaut, um tipo raro de epilepsia severa na infância: “Ele fica de capacete o dia inteiro, porque ele tem crises com som e com voz, então ele pode cair e bater a cabeça. Esse paciente a gente judicializou. Eu não falo pro paciente judicializar quando ele tem condição de comprar ou quando vai usar poucos frascos ao longo do ano, porque é um processo muito complicado. Mas, nós temos pessoas que precisam de doses muito altas”.

“Ele mora no meio do uma aldeia, onde ele não tem fonoaudiólogo, não tem fisioterapeuta, ele não vai na escola, ele não tem acompanhante terapêutico, ele não tem nada. Os amigos estão arrumando doação da cannabis para ele e eu tô dando uma dose pequenininha, porque ele precisaria de uma dose de 50 mg/kg. É uma mobilização que a gente faz para ajudar e ele está muito melhor do que estava há um ano e meio, antes de eu começar atendê-lo”, detalha a médica. Casos como esse se beneficiariam com uma maior abrangência da regulamentação, o que parece ainda muito distante em solo brasileiro.

No campo da pesquisa, em 2022 uma decisão judicial da 1ª Vara Federal de Florianópolis tornou a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a primeira instituição de ensino superior do Brasil autorizada a cultivar e a extrair óleos de cannabis para fins medicinais. A sentença permite o plantio, preparo, produção, fabricação, depósito, porte e prescrição de medicamentos derivados da planta da maconha durante todo desenvolvimento de pesquisa. Esta foi a primeira vez que uma instituição de ensino conseguiu uma liberação tão abrangente.

Além disso, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, foi aprovado um projeto de lei de autoria do deputado estadual Caio França (PSB) que assegura o fornecimento de medicamentos à base de cannabis pelo SUS (Sistema Único de Saúde) no Estado. O projeto agora aguarda sanção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Caso seja sancionado, não será mais necessário o pedido de autorização judicial e o canabidiol poderá ser distribuído diretamente a quem precisa, sem demais trâmites burocráticos.

Outras pequenas mudanças na legislação que regulamenta a cannabis medicinal no Brasil poderiam mitigar ainda mais o problema do acesso aos fármacos. A nutróloga destaca que um dos pontos centrais seriam a disponibilidade do medicamento em hospitais e a regulamentação definitiva do plantio da erva e da produção dos medicamentos em território nacional. “Eu quero que o paciente possa comprar na farmácia, eu quero que o paciente possa comprar na associação e eu quero que tenha produtos bons, com bula, disponíveis no hospital para eu usar em pacientes que precisam”.

“Por exemplo, quando um paciente está convulsionando no hospital, o pessoal faz Diazepam na veia. Por que não trata com o spray nasal de cannabis medicinal, que passa em cinco minutos a crise? Então eu quero que tenha todas essas escalas. Eu quero que tenha acesso. É isso”, defende. A especialista também destaca a regulamentação e ampliação dos estoques de medicamentos, para garantir que eles cheguem às prateleiras das farmácias.

O caminho para tais mudanças é longo e depende essencialmente de disputas a serem feitas na sociedade no âmbito econômico e político. Por isso, a mãe do Miguel acredita que apostar na educação das pessoas é fundamental: “No dia a dia, a gente fez disso uma grande bandeira para a gente poder ensinar as pessoas e a gente poder falar sobre o assunto. Hoje, o Miguel serve para que a gente seja uma porta voz nesse sentido de desmistificar e de ensinar”.

“Eu acho que a maior ferramenta que a gente tem contra o preconceito e os julgamentos é ensinar. No começo, a gente ouviu: ‘Ah! Você está dando maconha para criança’. Mas, eu acho que isso vem nesse contexto de desinformação. Hoje, a gente luta para mudar isso e para mostrar para as pessoas que não tem essa conotação negativa e que todo o tratamento com CBD envolve qualidade de vida e expectativa de vida”, declara Fernanda.

Hoje, a psicóloga dedica seu trabalho à luta da cannabis medicinal como parte do atendimento ao cliente da Hempmeds Brasil, empresa que conecta pacientes, médicos, empresas e associações para facilitar o acesso aos medicamentos no país. Desta forma, ela contribui para que mais pessoas conquistem o direito de sonhar com uma melhor qualidade de vida vinda diretamente do tratamento com cannabis.

“Hoje, a gente pode viajar em família, a gente pode desenvolver projetos, a gente pode criar, sonhar e criar planos de viagem, que a gente sabe que ele vai dar conta e que não vai acontecer nada. O que era uma preocupação muito grande que a gente tinha. A gente passou por uma fase muito difícil para realmente começar a viver”, define Fernanda.