Assexualidade: “Não tenho vontade, simples assim”

Ainda esquecidos pela ciência e pela mídia, pessoas assexuais desafiam a ideia de que sexo é uma necessidade para todos e ganham espaço com o ativismo virtual

Em 1869, o jornalista e ativista austro-húngaro Karl-Maria Kertbeny começou a publicar uma série de textos em formato de folhetins em Berlim, onde residia. Em seus escritos, Kertbeny criticava a chamada “Lei da Sodomia” do Império Prússia, que definia como crime comportamentos sexuais e amorosos entre pessoas do mesmo sexo, além de uma série de outras práticas sexuais. Optando por não utilizar os termos ofensivos típicos da época como “sodomita” e “pederasta” – acredita-se que ele mesmo era um homem gay, apesar de nunca ter admitido em seus diários –, o jornalista cunhou uma nova terminologia para classificar a sexualidade humana: o termo heterossexual para pessoas que mantinham relações com pessoas do sexo oposto, e homossexual para aqueles que se atraíam pelo mesmo sexo.

Kertbeny não viveu para ver, mas sua terminologia envelheceu bem e entrou para o vocabulário mainstream até os dias de hoje, tanto no linguajar científico como popular. Bom, pelo menos dois deles. Em seus textos, o jornalista versava sobre uma terceira categoria, a dos monossexuais – este grupo seria de pessoas que não se relacionaram sexualmente com outros indivíduos, e só teriam contato com algo próximo do sexo através da masturbação. O termo não pegou tanto – talvez pela própria ideia de que não existam tantas pessoas deste tipo pelo mundo não ter vingado tanto assim. 

Hoje, os “monossexuais” do século 19 têm outro nome: assexuais. Mas não foi só a terminologia que mudou. Com o avanço da ciência, começamos a compreender cada vez mais que a sexualidade humana é um negócio complicado e difícil de categorizar em caixinhas. Cada vez mais a existência de pessoas homossexuais, bissexuais, transgêneros e de outras minorias passou a ser reconhecida. Mas todas essas categorias têm algo em comum: pressupõe que o sexo é algo inerente ao ser humano, e que a partir dele nós podemos ser definido. Nas últimas décadas, porém, ficou claro que isso não era verdade para um número considerável de pessoas que passaram a reivindicar seu espaço e se assumir como assexuais.

A ideia de não sentir desejo sexual é estranha para a grande maioria das pessoas. O ato sexual é quase que ritualizado na sociedade – principalmente durante a adolescência, como a cobrança da perda da virgindade. A própria ciência pode questionar a existência de assexuais – afinal, o sexo têm, sob a perspectiva darwiniana, um importante valor na evolução das espécies, permitindo que organismos diferentes troquem material genético e resultem em uma variação de genes e de adaptações maior. Mas o fato é que a sexualidade vai muito além de instintos primitivos e envolvem fatores emotivos, sociais e até políticos que nem sempre são totalmente compreendidos.

Mas um movimento crescente de pessoas que se consideram assexuais vem desafiando o entendimento que temos sobre as relações humanas – e mostrando que sim, a vida é muito mais do que sexo.

O que é assexualidade, e quem são os assexuais

Durante sua adolescência, Yuri Paz, 25 anos, sentia algo que não conseguia explicar. Primeiro, ainda jovem, pensou que fosse gay. Depois, com o início da vida sexual, passou por um período em que se achava estranho, diferente dos outros. As questões de saúde começaram a preocupá-lo: pensou até mesmo que tivesse algum problema fisiológico relacionado à libido. Nada disso era verdade. O estudante de engenharia civil se descobriu assexual há quatro anos, depois de um processo lento e em meio a muitas dúvidas. “Eu vi uma história de uma mulher que ficou três anos sem sexo e foi muito feliz. Aí eu percebi que me identificava com essa ideia de que eu não preciso do sexo”, conta ele. “Foi uma libertação. Me aceitar foi um alívio”. 

O processo de se descobrir assexual parece ser complicado especialmente porque definir o termo não é fácil. Segundo Anthony Bogaert, assexualidade pode ser resumida simplesmente como a ”falta de atração sexual por outras pessoas” – apesar de ser uma definição vaga e que esconde os detalhes do tema. Ele, que é professor e pesquisador do Departamento de Psicologia da Universidade de Brock, no Canadá, é um dos maiores especialistas sobre o tema atualmente e foi um dos pioneiros nas pesquisas recentes sobre assexualidade, iniciadas em 2004. Antes disso, o assunto costumava ser tratado como um tabu. O primeiro trabalho realizado sobre o tema data de 1948. Foi conduzido pelo pesquisador Alfred Kinsey que, na época, tentou fazer um levantamento de quantas pessoas não tinham interesse em praticar relações sexuais. 

Décadas depois, foi a vez de Bogaert realizar pesquisa semelhante. O canadense chegou a uma estimativa impressionante: 1% da população mundial seria assexual, segundo seus cálculos. A pesquisa foi feita baseada em números britânicos, mas segundo dados do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex), da Universidade de São Paulo (USP), 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens brasileiros sentem que as relações sexuais não são necessárias em suas vidas. A pesquisa, de 2008, é uma das mais recentes realizadas no país. Os números são altos em relação à média global, mas isso pode ser explicado pelo fato da pergunta ser abrangente e englobar pessoas que não são assexuais nas respostas.

Segundo Anthony Bogaert, a causa da falta de atração sexual não é um consenso no meio científico. “A maioria dos pesquisadores da sexualidade concordam que não costuma ser uma escolha ou necessariamente um distúrbio. É considerada uma variação singular de orientação sexual”, explica ele. Em alguns casos isolados, traumas e distúrbios hormonais podem fazer com que o sexo seja evitado, seja por medo, seja por desconforto, respectivamente. Anthony ressalta, no entanto, que a falta de vontade ou prazer ao praticar sexo, assim como a falta de atração sexual, não significam um problema fisiológico. 

Na maioria das ocasiões, as pessoas apenas se descobrem assexuais, sem um motivo para tanto, assim como acontece com outras orientações sexuais, como a homossexualidade, a bissexualidade e a heterossexualidade. Muitos assexuais passam sua adolescência e até a fase adulta tentando encontrar respostas para a sua condição, indo a médicos e realizando exames que mostram que não há nada de errado. Desde 2013, a ausência de atração sexual não é classificada como doença, a não ser que prejudique o indivíduo, segundo o Manual de Estatística e Diagnóstico de Distúrbios Mentais. 

Nada de sexo?

Ser assexual não significa não ter relações sexuais. Também não significa não sentir prazer nessas ocasiões. Hoje, a assexualidade é melhor representada por um espectro, ao invés de categorias específicas. Com isso, a sexualidade humana, que é complexa, consegue ser melhor entendida em tipos diferentes. No espectro da alossexualidade – a sexualidade que envolve necessariamente atração sexual por outras pessoas, ou seja, a não-assexualidade – existem os estritamente héteros, os estritamente homo e uma larga faixa no meio que pode ser resumida como “bissexualidade”, mas que pode ter suas diferenças em relação à preferências ou atrações maiores por um sexo do que outro, por exemplo. 

No espectro da assexualidade, o mesmo acontece. Alguns são assexuais estritos, não sentem atração sexual em nenhuma circunstância. “Eu estou mais na zona cinza”, explica Yuri. A tal zona cinza é conhecida também como Gray-A e caracteriza os assexuais que podem sentir desejo sexual em determinadas situações específicas. “Tem momentos que eu gosto do sexo, até sinto um pouco de prazer, mas não tenho essa necessidade. Sexo, para mim, não está acima das outras coisas”, completa. 

Ainda existem outras diferenciações. O assexual arromântico não sente atração sexual nem interesse amoroso, ao contrário do assexual romântico, que pode se relacionar amorosamente com outras pessoas. Ainda dentro dos românticos, os grupos se dividem entre heterroromânticos, birromânticos e homorromânticos. É o caso de Poliana Lazarini, estudante de 18 anos, que se define como assexual estrita heterorromântica. Já os demissexuais só têm interesse sexual quando há, primeiramente, um sentimento afetivo pelo outro. 

Ariel Franz, 26, se classifica como assexual fluido. Nesse caso, sua atração e desejo sexuais não são estáveis. “É uma pessoa que em um determinado tempo pode se sentir como um demissexual, tempos depois se sentir como um grayssexual e em outro período como um assexual estrito”, explica Ariel sobre o termo. “Assexualidade não se refere à prática, mas sim à atração do indivíduo”, complementa. 

Em uma sociedade hipersexualizada, entretanto, não é incomum assexuais relatarem histórias em que o sexo é realizado às custas de pressões sociais ou como forma de agradar um parceiro ou parceira. “Geralmente há uma expectativa para que sejamos pessoas sexualmente ativas”, explica o professor Anthony. “Muitos praticam sexo com seus parceiros ou parceiras para satisfazê-los, mesmo que eles não se sintam atraídos nesse sentido”.

“As pessoas crescem ouvindo as outras dizerem que sexo é maravilhoso. Então quando você se afirma dizendo não gostar de sexo, há o espanto”, relata Ariel. Durante relacionamentos ele também conta que já passou por experiências frustrantes, principalmente antes de se descobrir assexual. “Eu me sentia uma pessoa falha por recusar o sexo. Eu não conseguia suprir as necessidades dos outros”. Ele ainda conta sobre uma amiga que perguntou, incrédula, se havia cura. “Quando a gente conta que é assexual, as pessoas simplesmente não acreditam”, explica. 

Para alguns, a quebra da pressão social do sexo por meio da auto aceitação foi o melhor caminho para uma boa auto-estima e uma vida mais saudável, principalmente no âmbito mental. “Para mim, ser assexual é quase um privilégio. Isso faz com que nós consigamos enxergar as pessoas mais do que apenas um corpo atraente nessa era tão hiperssexualizada”, diz Poliana, que se descobriu assexual há apenas dois meses. 

Outro senso comum completamente equivocado é associar a assexualidade à falta de libido ou de sentir prazer. Pessoas no espectro cinza podem sentir prazer sexual, mesmo que não necessariamente sintam vontade e/ou necessidade de realizar atos sexuais com outros. “Alguns assexuais se masturbam mas mesmo assim não sentem atração por outras pessoas”, elucida o pesquisador Bogaert. “Então, se expressam sexualmente de forma solitária.”

Um estudo da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, com um total de 924 indivíduos, revelou que 60% dos assexuais relataram ter tido ou ter algum tipo de fantasia sexual, contra uma média de 95% de pessoas alossexuais que declararam o mesmo. Ainda além, 11% dos entrevistados responderam que suas fantasias sexuais não envolvem outras pessoas – um número muito maior do que o 1,5% de alossexuais que determinaram a mesma resposta. O estudo também concluiu que os assexuais, apesar de serem menos ativos nesse sentido, podem sim se masturbar, seja através de estímulos visuais ou apenas da imaginação.

Mulheres têm maior tendência à assexualidade?

A ciência tenta explicar os números relativos às pesquisas sobre assexualidade. Elas apontam que mais mulheres são assexuais que homens, segundo dados da ProSex, da USP. A ciência encontra algumas explicações. “Mulheres podem ter menor impulso sexual em geral em relação aos homens, então elas podem estar muito representadas na extremidade inferior do espectro sexual”, afirma Bogaert.  Contudo, segundo ele, os números podem revelar características sociais para além das fisiológicas. 

Mariana Santos, 27, estudante de Ciências Sociais, é assexual e conta que percebe uma reação diferente das pessoas quando conta a elas sua orientação sexual em comparação com seus amigos assexuais. Segundo ela, isso acontece porque, em resumo, vivemos sob a seguinte construção social: os homens devem ser sexualmente expressivos e as mulheres não, mas a atração e o hábito sexual deve fazer parte da vida dos dois, ainda que de formas diferentes.

Entre os homens a resistência da aceitação é maior, tanto por parte deles mesmos, quanto por parte da sociedade. O machismo estrutural faz com que menos homens se declarem assexuais em comparação com as mulheres e também faz com que os homens assexuais sejam menos aceitos. “Há uma lógica patriarcal e sexista que rege as relações sociais e que afirma que os homens devem ter uma vida sexual ativa. Desde o início da adolescência a pornografia é estimulada nos círculos frequentados pelos garotos, e muitas vezes esses estímulo vem até mesmo dos próprios pais”, conta Mariana, que cresceu em meio a cinco irmãos. 

“Já as mulheres ‘respeitáveis’ e ‘dignas’ não devem expressar sua sexualidade, se resguardando para apenas um homem, seu parceiro romântico, que tem o domínio sobre seu corpo e seu comportamento”, explica. Mulheres que declaram ter uma vida sexual ativa não raramente são oprimidas e caladas. Meninas têm menos acesso a informações sobre sexualidade, porque o assunto é velado dentro das suas casas e, consequentemente, em seus círculos sociais. “Por isso é que as mulheres têm menos dificuldades em se auto declararem assexuais e essa condição é mais bem aceita, ainda que por motivos preconceituosos e distorcidos”, conta Mariana. 

É possível amar sem sexo?

Segundo o professor Bogaert, um dos maiores mitos difundidos na sociedade sobre a assexualidade é que as pessoas assexuais não são interessadas em relações amorosas. Os assexuais românticos provam o contrário. Nesse ponto, é importante diferenciar o interesse romântico do interesse sexual. Enquanto o segundo envolve diretamente a libido humana, os relacionamentos românticos são muito mais emocionais e socialmente construídos. Por mais que seja estranho para o senso comum sexonormativo, é perfeitamente possível – e até mesmo lógico – dissociar os dois conceitos; afinal, se a ideia de que é possível haver sexo sem amor, porque não o contrário? 

Assim, considerando esses dois aspectos como distintos e independentes, pessoas que experienciam ambos os interesses são denominados alossexuais – ou seja, a maior parte da população. Aqueles que sentem apenas o interesse amoroso são chamadas de assexuais românticos, e os que não se interessam nem romanticamente e nem sexualmente são assexuais arromânticos. Não é incomum, portanto, que pessoas assexuais mantenham relacionamentos amorosos. 

Outro mito é que assexuais se relacionam apenas com outros assexuais. Por se tratar especialmente de emoção e conexão, o relacionamento romântico pode ocorrer entre qualquer pessoa romântica. Não é fácil, porém, manter um relacionamento desse tipo em uma sociedade extremamente sexualizada. Poliana conta que esteve em um relacionamento por um ano, e sua principal barreira era o julgamento de terceiros: “As pessoas falavam: ‘como você pode gostar de uma pessoa e não ter vontade de beijar?’. E na época eu me sentia um extraterrestre”. O medo de decepcionar os sentimentos do seu parceiro também foi constante. Mas hoje a estudante entende que seu comportamento é perfeitamente normal: “Eu não tenho vontade, simples assim. Isso não me impede de gostar de uma pessoa”.

Yuri defende que, nos relacionamentos entre assexuais e alossexuais, deve haver empatia destes. “Se relacionar com um assexual também deve ser difícil, mas as pessoas tem que achar um acordo, porque senão não vai dar certo. Tanto pode existir necessidade básica do sexo para uns, como pode não existir para outros”, afirma ele. 

A problemática dessas relações, no entanto, vai além. Mesmo que um parceiro respeite os limites do outro, a pressão pela realização do ato sexual pode vir da sociedade em geral ou até de uma culpa interna, um medo de perder o relacionamento se não houver sexo. “[Algumas pessoas] praticam sexo com seus parceiros/parceiras românticos para satisfazê-los, mesmo que não se sintam atraídos nesse sentido”, conta Bogaert.

Mas isso também pode ser perigoso. Mariana conta que a maioria dos homens alossexuais com quem se relacionou não aceitavam sua condição. “Por muito tempo eu transei sem ter vontade, por obrigação. Muitas vezes a relação sexual foi forçada mesmo. Hoje vejo isso como um abuso, um estupro. Na época eu não percebi. Não sabia que eu era assexual, mas sabia que eu não me sentia confortável. Depois do sexo, vinha o choro”, relata.

Preconceito e visibilidade

Em 1948, o biólogo e sexólogo Alfred Kinsey publicou o polêmico “Sexual Behavior in the Human Male”. O livro coletou dados sobre a sexualidade humana e criou uma escala de orientação sexual, baseada nos extremos 0 e 7, sendo 0 estritamente heterossexual e 7 estritamente homossexual, com os números intermediários representando nuances da bissexualidade. O caráter assexual não foi incluído em sua escala, mas não deixou de ser representado: não por um número, mas pela letra X, para mostrar que era algo diferente.

O caso de Kinsey é simbólico de como o debate acerca da questão assexual foi e ainda é muito restrito. Mesmo com as novas prerrogativas do estudo de gênero do final do século 20 e do começo do século 21, grande parte do pensamento sobre a sexualidade humana parte do pressuposto que a atração sexual é algo natural e compulsório; é a chamada sociedade sexonormativa. “As pessoas não compreendem bem a assexualidade porque existem menos assexuais do que, por exemplo, gays e lésbicas”, relembra Bogaert, pioneiro dos estudos sobre a assexualidade.

Apesar da baixa representatividade percentual, os assexuais ultrapassam o número de 70 milhões de pessoas, constituindo uma população maior que a de países como a França e o Reino Unido.

Grande parte da falta de visibilidade que acomete a causa assexual é explicada pela quase inexistente representação midiática dessa orientação. Diferente da homossexualidade, bissexualidade e até mesmo transsexualidade, é difícil encontrar personagens notáveis que carreguem a condição da assexualidade. Muito mais que uma necessidade de se ver na mídia, a representatividade também é importante no próprio processo de auto entendimento da condição. Ariel conta que se descobriu assexual através da televisão: “Foi uma entrevista sobre assexualidade no programa da Marília Gabriela. A entrevistada, a pesquisadora Elisabete Regina, descreveu a assexualidade e eu me identifiquei”. 

Poliana também comenta da importância que a mídia teve sobre sua aceitação, lembrando do personagem Sheldon da série americana “The Big Bang Theory”, interpretado pelo ator Jim Parsons: “Quando na época que eu assistia e não sabia sobre a assexualidade, ele era a pessoa que eu mais me identificava. Eu nunca achei ele excêntrico. Eu olhava e falava: ‘isso não é esquisito’”, se referindo ao fato que o desinteresse sexual do personagem muitas vezes era tratado como algo cômico. “Era como uma forma de consolo e de abrigo, ele era o único com o qual eu podia me identificar”, acrescenta ela. 

Mas a falta de representação não é a única dificuldade que os assexuais enfrentam. Por ser uma condição muitas vezes desconhecida, o preconceito é algo constante na vida dessas pessoas. É comum que a assexualidade seja patologizada, associada a deficiência de hormônios ou traumas sexuais – embora a comunidade científica não tenha chegado a um consenso e os estudos mais recentes consideram a condição como mais uma orientação sexual. Poliana relembra a ocasião em que, ao se assumir para um amigo, foi alvo de preconceito: “Ele riu na minha cara, falou que era frescura. Depois, disse: ‘me mostra seus exames hormonais e a gente conversa’”.

A comunidade ace –  como são conhecidos os assexuais no exterior – encontra também resistência em ser aceita dentro do próprio meio LGBT. Até mesmo a sigla do movimento reflete isso: embora haja a variação LGBTQA+, em que o A sinaliza a assexualidade, é mais frequente o uso da sigla LGBTQ+ (que engloba os queer) ou simplesmente LGBT, que ignora outras minorias que se diferem do padrão heteronormativo. Yuri concorda em que ainda há uma resistência por parte dos LGBT de compreender e aceitar a assexualidade como orientação sexual legítima: “Eu não me sinto aceito no meio LGBT. Eu realmente acho que como o surgimento da comunidade gay foi a partir da libertação sexual, a ideia de não fazer sexo para eles é muito estranha”.

Aos poucos, porém, a assexualidade ganha visibilidade, especialmente na internet, espaço em que a militância e a troca de informação é mais dinâmica. A I Parada Assexual do Brasil, que aconteceu em 2015, em São Paulo, ilustra a importância do virtual na organização dos assexuais como grupo social. A reunião foi combinada por um evento de Facebook e reuniu cerca de 150 pessoas que se manifestaram na Avenida Paulista sob as cores da bandeira assexual. Por ser o único espaço rico em informações sobre essa orientação, é comum que assexuais se encontrem como tais depois de pesquisas online, como foi o caso de Poliana.

“A internet simplesmente nos une”, diz Ariel, que coordena páginas e um blog sobre o assunto. “É muito difícil encontrarmos assexuais na vida real. É através da internet que nos ajudamos, compartilhamos experiências e fazemos novos amigos assexuais.”

Foi também na internet que surgiram alguns marcos para a luta assexual. As cores preto, cinza, branco e roxo foram escolhidas e também popularizadas na rede como representativas do movimento e formam a bandeira que hoje une todo o espectro assexual. Outro símbolo informal do movimento surgiu na internet: o bolo. Isso porque a anedota de que assexuais preferem bolo à sexo se popularizou e logo se transformou numa espécie de piada interna do grupo, um meio de reconhecimento. Mais além, é possível afirmar que a própria militância assexual teve seu início na internet, mais de 20 anos atrás – através de uma metáfora debochada e inteligente.

Vivendo como uma ameba

Em 1997, a usuária de um fórum americano Zoe O’Reilly publicou o relato “My life as an amoeba” (A minha vida como uma ameba), em que ela elenca pontos de reivindicação para o grupo assexual e faz um paralelo levemente cômico com as amebas, seres microscópicos que vêm imediatamente à mente das pessoas alossexuais quando se fala de assexualidade. “Na visão de todo o resto do mundo, não existem seres assexuais com mais de uma célula”, ironizou ela.

Desde então, a ameba também passou a ser um símbolo sarcástico dos assexuais, principalmente no exterior. O relato é considerado como um primeiro manifesto de defesa dessa orientação e é um marco na luta assexual, sendo pioneira na união e identificação entre assexuais de todo o mundo. “Eu finalmente encontrei outra pessoa que é assexual”, diz um dos comentários. Outro membro do fórum também expressa seu alívio ao descobrir semelhantes: “Eu estive lidando por muito tempo com a minha sexualidade (…) e estou feliz de ver que há muitos outros [assexuais] por aqui!”

O relato do milênio passado também prova que os assexuais sempre existiram –  apesar de, por pressão, desconhecimento ou outros motivos,  esconderem por muito tempo sua condição e tentarem se adequar ao padrão sexonormativo da sociedade. Por meio do ativismo da comunidade assexual, a desconstrução de uma noção de alossexualidade compulsória é construída, e a internet é um importante meio para atingir avanços, principalmente através da divulgação de informação e depoimentos que ajudam a compreender que a sexualidade humana é muito complexa e pode se expressar (ou não se expressar) de várias formas. 

“Vocês [alossexuais] podem não nos entender por inteiro, eu compreendo essa parte. Mas tenham empatia, sejam gentis”, pede Poliana. “Se alguém se assumir assexual, não ria, não bombardeie com argumentos clichês e não seja desrespeitoso. É uma grande honra para gente contar com uma pessoa e ela ser legal ao invés de um tremendo pé no saco.”

Por Bruno Carbinatto
brunocarbinatto@usp.br