Cremilda Medina: autora de mediações (ainda) em busca do diálogo possível

por Bruno Militão

Comemorando os 50 anos do ingresso no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECA, a primeira mestra da área no Brasil recorda sua trajetória

Ao entrar na sala 04 do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA, encontramos uma mesa redonda de madeira com algumas cadeiras, alguns arquivos e três prateleiras de aço cheias de livros. Em uma delas, em especial, há diversos livros de uma mesma série. “Desses aí você pode se servir”, explica Cremilda Medina, professora ali há mais de 40 anos. Seu nome se encontra em uma placa na porta, indicando que o espaço ali é dela. Os livros disponíveis para o banquete compõem a série São Paulo de Perfil, que compreende livros-reportagem organizados pela docente junto a alunos de suas disciplinas de graduação entre 1986 e 2004. Ao todo, 26 obras impressas foram publicadas. O último volume produzido não pôde ser impresso por falta de verba. “Eu saía de chapeuzinho na mão pra conseguir subsídios para publicação”, lembra. Apesar do início desse projeto datar de meados dos anos 1980, a relação de Cremilda com o CJE tem início muito antes – e com o jornalismo, mais ainda.

Cremilda Celeste de Araújo Medina, hoje professora emérita pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina Universidade de São Paulo (Prolam), nasceu em Portugal e aos 11 anos de idade veio com a família para o Brasil, estabelecendo residência em Porto Alegre. A garota Cremilda era fã de um programa da Rádio Farroupilha no qual um delegado tinha um espaço semanal para fazer crônicas sobre menores abandonados. Aos 17 anos, “muito guria”, pouco antes de escolher o que fazer da vida no vestibular, ela se apresentou a ele na delegacia. “Olha, doutor, sou uma grande fã do seu programa e gostaria de lhe pedir um grande favor. Queria fazer um estágio contigo para acompanhar essas histórias.” Para o delegado, aquele não era ambiente para a menina. “Mas eu insisti até que ele autorizou; e fiquei por lá durante um mês, acompanhando essas histórias.” E foi ali, na delegacia de menores, que nasceu a jornalista. Ainda assim, atendendo a desejos do pai para “não desperdiçar inteligência”, junto com a faculdade Jornalismo, Cremilda cursou Letras Clássicas, ambas as graduações na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde conheceu Sinval Medina, hoje seu marido. São 62 anos de convivência, 58 de casados. 

A única coisa em que ela pensava em ser era repórter. “Na Revista do Globo, fui repórter, copydesk e redatora – mas este odiava, não gostava de escrever texto dos outros, eu queria trabalhar com reportagem.” A docência veio logo depois, inicialmente como necessidade: Cremilda e Sinval pretendiam se tornar independentes, formar uma casa, mas o salário dele (trabalhando em publicidade) e dela “não dava pra casar”. Depois dele ser aprovado para um concurso do Banco do Brasil, a família se mudou para Camaquã, a cerca de 130 quilômetros da capital gaúcha. “Tive de recorrer ao magistério, dando aula em dois polos: na Escola Normal em um colégio público de Segundo Grau”, lembra a repórter, que ainda mantinha uma coluna na revista que mais tarde seria incorporada às organizações Globo. 

De volta a Porto Alegre, em 1967, a jovem jornalista recebe um convite para ser assistente de catedrático na Faculdade onde havia se formado. “O catedrático escolhia seus assistentes para fazer o Jornal Escola com os alunos, mas ele me deixava só na diagramação: não admitia que eu desse muita opinião na questão jornalística.” Lá ela fica até o surgimento de um boato de que na USP, em São Paulo, surgiria o primeiro programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação do Brasil. 

Assim, aproveitando uma viagem a São Paulo para a Primeira Bienal do Livro de São Paulo, em 1970 (quando encontrou o escritor argentino Jorge Luís Borges, a fim de negociar os direitos para a publicação da obra completa dele no Brasil), ela conhece o Departamento de Jornalismo e seu chefe à época, o professor José Marques de Melo. Já naquele momento houve um aceno para que ela fosse ao departamento para ministrar aulas na graduação. O fim daquele ano trouxe grandes e rápidas mudanças, fim do contrato com a Federal, ida às terras paulistanas, “Sinval veio um pouco depois”. Em 1971, os alunos da ECA entram em contato com a professora Cremilda Medina – o que entusiasmou aquelas turmas, como se pode ver no boletim do Centro Acadêmico à época.

[ATÉ QUE ENFIM!
É. Até que enfim mesmo, apareceu um professor (ou melhor, uma professora) que merece muito aplauso. É a Cremilda, de Jornalismo Comparado, do 4º semestre. Os motivos?
1) Apresentou um programa excelente, baseado em pesquisas e muita discussão sobre aspectos importantíssimos do Jornalismo, e
2) O programa foi apresentado no primeiro dia de aula, quando se pediram sugestões e modificações aos alunos.
Cremilda: estamos aí!]
(Foto: Bruno Militão).


Cremilda atribui a boa receptividade dos alunos a algumas questões. Uma delas é o fato de que, por meio de sua formação pedagógica, tinha uma maneira de trabalhar a questão do ensino. “Da licenciatura, recebi o legado de que não se faz um processo de transmissão de conhecimento, mas sim o processo de ensino-aprendizado, construído por educador e educando de forma conjunta. Isso pra mim é fundamental, na medida em que vou trabalhar com disciplinas laboratoriais.” Além disso, não se pode pensar apenas em um ensino tecnicista, mas sim que incentive a criação de novos conhecimentos a partir da pesquisa. Está aí, segundo ela, a origem do primeiro laboratório de graduação que foi a Agência Universitária de Notícias (AUN), vinculada à disciplina de Jornalismo Informativo, ministrada por ela e por seu colega, o jornalista Paulo Roberto Leandro, a partir de 1971.

A estrutura à época era bem parecida com a dos dias de hoje: os alunos se dividiam entre “editorias”, ligadas aos institutos da USP, e produziam boletins noticiosos sobre as descobertas científicas e pesquisas em desenvolvimento. As unidades ainda não possuíam assessoria de imprensa. Assim, as pautas eram descobertas pelos repórteres-alunos, andando pelo campus em busca de temas. As turmas passavam pelas funções de reportagem e de edição, revezando-se internamente. “Aquela famosa briga de redação em que o editor massacra o repórter se repetia entres os alunos também. Tínhamos de apartar brigas: os conflitos de poder se repetiam aqui dentro.” Os boletins de notícias semanais da AUN, mimeografados, eram distribuídos pelas redações na cidade de São Paulo por uma kombi; para os jornais do interior, eram enviados pelos Correios. 

A outra disciplina ministrada pela dupla Cremilda e Paulo Roberto era a de Jornalismo Interpretativo, na qual propuseram um aprofundamento da notícia por meio da reportagem. As quatro linhas para se pensar o processo de reportagem são válidas até hoje, segundo a professora. A primeira delas é o encontro de protagonistas sociais, de preferência anônimos, que não têm voz na grande mídia. Na segunda, deve-se contextualizar coletiva e socialmente essa história de vida, o perfil que se escolheu para ser trabalhado. É a partir dessa linha que se chega à terceira, que é o chão histórico e cultural desse coletivo – que, para a professora, é a linha mais carente na reportagem brasileira. Na quarta, devemos buscar especialistas a fim de, não explicar, mas ensaiar compreender aquela situação e formar algum tipo de prognóstico. Uma das formas por meio da qual colocaram isso em prática foi por um jornal comunitário em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo. 

Ao longo desses primeiros anos, além dos projetos com alunos de graduação, Cremilda ingressou no curso de mestrado da pós-graduação em Comunicação, que completa 50 anos em 2022, e, em 1975, se tornou a primeira mestre no Brasil nessa área. A dissertação, que versou sobre a estrutura da mensagem jornalística foi, mais tarde, publicada com o título “Notícia, um produto à venda”. Ainda junto às primeiras pesquisas na USP, veio a oportunidade da especialização em jornalismo em Quito, no Equador, em 1972, no CIESPAL (Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina). Desses contatos com colegas pesquisadores e jornalistas da América Latina (e as próprias teorias latinoamericanas da comunicação), que se estendeu até fins dos anos 1980, veio a oportunidade de integrar o Prolam. 

O contexto da ditadura militar, no entanto, fazia suas vítimas dentro da ECA. O professor Sinval Medina, também aluno do mestrado em Comunicação, havia sido reprovado em seu exame de qualificação de mestrado e demitido do cargo de professor e vice-coordenador do CJE. Em protesto, Cremilda, juntamente com os professores Paulo Roberto e Walter Sampaio, se demitem. Assim, a trajetória acadêmica da professora na USP é pausada até 1984, quando retorna, para dar continuidade à pesquisa. Ela ingressa no doutorado, defendido em 1986, e (novamente) a convite do professor José Marques de Melo, retorna para ministrar suas disciplinas. Entre uma ponta e outra do trabalho acadêmico, torna-se redatora (e posteriormente editora e repórter especial) d’O Estado de São Paulo, onde trabalha até 1985.

Agora, com as novas experiências e conhecimento adquiridos, nasce um novo projeto com os alunos de graduação: o São Paulo de Perfil. Ao longo da disciplina, os alunos produziam reportagens interpretativas, de perfis e histórias de vida, ligadas a um tema comum. O livro inaugural da série, “Virado à paulista”, lançado em 1987, por exemplo, reúne relatos dos constituintes do estado de São Paulo. Nos quase 20 anos da série, cada edição contava com uma temática diferente. “Minha preocupação não era doutrinar um técnico, mas sim estimular um autor. A autoria do jornalista é fundamental na mediação social da comunicação.” A preocupação de criar autores interrogantes levou Cremilda às “Trilhas do Saber Plural”. 

De onde buscar essas interrogações? Para a docente, apenas por meio do contato com o mundo. “Se o jornalista se fecha em uma redação, em uma empresa, atrás do computador, do seu home office, ele não vai ao mundo e conforma seu conhecimento e até suas técnicas a um parâmetro fechado.” Daí a criação da linha de pesquisa “Epistemologia do Diálogo Social”, ou seja, o conhecimento do conhecimento sobre a própria comunicação e sua indissociável relação dialógica. 

Na busca pela consolidação do jornalismo como uma ciência, sobre o qual deve-se interrogar constantemente, Cremilda buscou articulações da comunicação com outras áreas do conhecimento, até as “ciências duras”, como medicina, física, matemática, a fim de criar o projeto transdisciplinar Novo Pacto da Ciência, em parceria com professores e pesquisadores de diversos institutos da USP a partir de 1990, o primeiro do tipo a ser financiado pelo CNPq. Dessas contribuições, doze livros foram produzidos – tendo o último sido publicado neste ano. Ali, descobriu-se que as incertezas e angústias atravessam todos os campos do conhecimento e, a partir de então, puderam realizar trocas que iriam continuar influenciando as atividades da docente e pesquisadora.

Uma das mais importantantes contribuições do projeto, segundo ela, vem da física quântica: a relação entre o pesquisador e a questão pesquisada, como “o ato de lidar com o microscópio, com a matéria” nas ciências biológicas. Diferentemente do que se vem pregando academicamente, a proposta é de que o contato não seja de sujeito-pesquisador e objeto de pesquisa, mas sim sujeito-pesquisador e sujeito de pesquisa, já que ambos interferem um no outro. Assim deve ser no jornalismo, tratando as fontes e os personagens não como objetos de pauta, mas como sujeitos com os quais os jornalistas interagem e por esses são impactados. 

A maneira com que os jornalistas vêm trabalhando com o mundo, essa de ver objetos dignos ou não de reportagem, e não sujeitos, está cada vez mais empobrecida, na visão de Cremilda. A esse quadro, se junta desafios de se analisar os fenômenos da sociedade. “Esse é o desafio do jornalismo: como não se entregar nem à monologia nem à dicotomia, perceber que diversos são os fatores que atuam sobre um mesmo fenômeno, o que nos leva mais a pobres relatos burocráticos da realidade e menos a efetivas narrativas da contemporaneidade.” A essa proposta de enxergar o jornalismo e os jornalistas, como sujeitos-autores mediadores do binômio ciência-sociedade, a professora dá o nome de Signo da Relação. É essa forma de se pensar e fazer o jornalismo que Cremilda colocou em prática ao assumir a Coordenadoria de Comunicação Social da USP em 1999, cargo que ocupou até 2005. 

Em 2012, a professora Cremilda se aposenta, mas continua atuando como professora sênior, orientando alunos e ministrando disciplinas na pós-graduação. Ela já podia se aposentar muito antes desse momento, mas foi “empurrando até a data limite”, dos 70 anos de idade. “Não queria receber um bilhete azul no computador sobre aposentadoria compulsória…” Hoje, além da atuação junto ao Prolam e à ECA, ela continua ministrando oficinas-laboratório de narrativa, denominado “Memórias Lúdicas”, na tentativa de oferecer uma “miúda alforria aos desgostos” recentes. “Com tanta tragédia, só mesmo com o lúdico para sobrevivermos”. Depois de tudo isso, o que há mais a descobrir? O que mantém a motivação apesar dos percalços? “Para mim, é a experiência em grupo, na qual sou viciada. Sozinha, eu não estaria viva”, finaliza. Nesse momento, aproveito para pedir à professora algumas assinaturas nas minhas edições de sua obra. Ao terminar, ela diz, como quem conta um segredo: “Agora, não se esqueça de mim”. Nunca, mestra.


(Foto: Bruno Militão).