Na zona mais verde de São Paulo, focos de depredação em parques disparam

Em meio a tanta pedra, São Paulo ainda guarda a sua selva. Talvez não por muito tempo, especialmente se levarmos em conta os dados do território mais verde da cidade, a zona Sul. Nos parques naturais municipais paulistanos localizados nessa região, a degradação aumenta. A reportagem de Babel fez uma análise exclusiva das ocorrências nas áreas de preservação da região. Os dados disponíveis preocupam: entre 2017 e 2022, houve parques em que as ameaças aumentaram mais de nove vezes.

No dia a dia dos parques, “ocorrência” é um termo comum no vocabulário dos vigilantes e gestores. “É uma ocorrência que temos direto aqui, mas não pode”, relata a gestora Maíra Galvanese se referindo ao corte de árvores. Maíra é uma das responsáveis pelo Parque Natural Municipal do Varginha, localizado no Grajaú. Além de “supressão arbórea”, pesca, furtos e outras ilegalidades são enquadradas em ocorrências e acontecem com frequência no entorno dos parques.

Via Lei de Acesso à Informação (LAI), Babel pediu para a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) o compilado das ocorrências desde a abertura dos parques, em 2012. Os dados são contabilizados apenas a partir de 2015 – ainda assim, de forma lacunar. É possível observar aumentos nas ocorrências em todas as quatro unidades da zona Sul abertas ao público. Os números exclusivos que você confere a seguir são do Parque Varginha, que possui os registros mais completos.

Em 2017, de janeiro a dezembro, o Varginha teve 71 ocorrências. Esse total aumentou mais que nove vezes: pulou para 684 até o fim de 2022, um aumento de 863%.

A zona Sul de São Paulo abriga quatro Parques Naturais Municipais. Além do Varginha, há o Itaim, Jaceguava e o Bororé. Na maior cidade da América Latina, eles funcionam como uma barreira de proteção dos 12% remanescentes de Mata Atlântica no Brasil. Além disso, também servem o propósito de educação ambiental, com pesquisas científicas sendo realizadas.

São esses espaços que puxam para cima a cobertura arbórea da zona Sul. De acordo com um relatório da SVMA, a subprefeitura de Parelheiros tem 83% de seu território coberto por copas de árvores. Maíra define a zona Sul como “a pérola da cidade” ao lembrar da importância hidrográfica, agrícola e ambiental da região. “Mas vem passando por um processo complicado”, ela continua.

O alerta não vem ao acaso, já que o aumento de ocorrências extrapola os limites do Varginha. Nos 276 hectares do Jaceguava, por exemplo, esse total passou de 93 em 2016 para 238 em 2022, o que representou um aumento de 2,5%. Nem todas as ocorrências são causadas pela ação humana, mas pessoas ligadas à gestão dos parques já correlacionam o aumento das ameaças ao avanço da urbanização nas áreas de proteção.

A expansão da mancha urbana em São Paulo e seus efeitos deletérios para a natureza já haviam sido explicitados pelo então vereador Gilberto Natalini em um dossiê de agosto de 2019. A região do Grajaú sofreu com um desmatamento de 256.820 m². Parelheiros teve aproximadamente 740.860 m² de destruição. O documento apontava a construção de habitações e a ação de criminosos como causas do desmatamento.

Linha de frente

A ocorrência do dia 17 de dezembro de 2018 dá uma ideia de como ocorrem os ataques. Naquela época, a SVMA constatou a derrubada e retirada da cerca e a supressão de vegetação dentro da área do parque Varginha. Área afetada: 2 mil m². Dois homens derrubavam árvores com foices. Quando os guardas civis metropolitanos adentraram na mata, o mandante fugiu.

Quem realiza os registros das ocorrências são principalmente os vigilantes dos parques. Nesse campo, Claudionor Santana é figura conhecida. Ele trabalha nos Parques Naturais Municipais desde que foram inaugurados, em 2012. De lá para cá, ele tem o álbum da zona Sul quase completo: começou no Varginha, passou pelo Bororé e pelo Itaim até terminar como chefe de vigilância do Varginha, onde trabalha atualmente.

Nesse tempo, ele notou algumas diferenças: “Quando eu cheguei, tinha que ter coragem para trabalhar aqui. Era mata grande, tudo sujo. Hoje em dia é um paraíso”.

Claudionor é quem também acompanha os visitantes do Varginha nas trilhas que o parque abriga e foi o plantonista que mais registrou ocorrências nos últimos anos. Em entrevista, ele relata seu dia a dia de ocorrências, representadas por trabalho religioso e até incêndios. Nesse último caso, os vigilantes contam com a formação como brigadistas para combater as chamas. Até agosto de 2022, foram 47 ocorrências relacionadas a incêndios de um total de 992 no Varginha.

Um ponto verde no mar cinza

Antes de Claudionor, a primeira figura com a qual o visitante do Varginha se depara antes de entrar no parque é a do zelador Ivan Bernardo. É ele que controla a entrada e saída de pessoas e anota a origem de cada um dos visitantes. No decorrer de um fim de semana agitado, ele conta que o parque recebe cerca de 200 visitantes, número que os funcionários consideram ainda baixo para os potenciais de lazer que os parques têm.

Ivan mora em Parelheiros, área próxima do Varginha, e vai de bicicleta ao trabalho. Demora 50 minutos para chegar a um de seus lugares favoritos: “É um lugar de paz. É maravilhoso trabalhar aqui”.

De fato, quem está acostumado com a vida caótica, barulhenta e quente de São Paulo e espera encontrar o mesmo dentro dos parques terá um choque. As buzinas dão espaço ao som de pássaros e o calor do concreto troca de lugar com o frescor oferecido pelas inúmeras árvores encontradas no local.

Líquens da cor vermelha nas árvores indicam ambiente pouco poluído [Foto: Letícia Gouveia]
Parques Naturais Municipais compõem uma das categorias de unidades de conservação (UCs), modalidade estabelecida pela lei federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000. É dever desses espaços conciliar conservação ambiental com educação, pesquisa e visitação. Confira os horários de funcionamento aqui. Eles também servem para preservar a fauna e a flora – há, inclusive, a presença de animais resgatados em parques.

De acordo com o Painel de Unidades de Conservação Brasileiras, a maioria das UCs do Brasil existe para a preservação da Mata Atlântica. 1.589 unidades estão localizadas neste bioma, o que representa 59,76% do total brasileiro (no quesito área demarcada por UCs, a Mata Atlântica só perde para a Amazônia). Destas, 396 são administradas pelo poder municipal. “[O Parque Natural Municipal] É uma forma de garantir que pelo menos um pedaço da cidade tenha vegetação nativa”, explica Rodrigo Martins, diretor da Divisão de Patrimônio Ambiental (DPA) da SVMA.

A paz que sente Ivan e que também é citada por Claudionor não é a única vantagem que esses parques oferecem à população. De acordo com Reinaldo Tadeu, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, os Parques Naturais Municipais “são provedores da vida. Essas áreas naturais protegidas garantem que a gente possa continuar vivendo aqui por meio de uma série de serviços ecossistêmicos para a Região Metropolitana de São Paulo, especialmente água”. 

Ele lembra que os parques da zona Sul encontram-se em regiões de mananciais. Ou seja, boa parte da água que vai para regiões mais centrais da cidade sai de lá. Além disso, eles também servem para drenagem e conservação do solo e da vegetação.

Macaco sagui é presença recorrente dentro dos parques [Foto: Letícia Gouveia]
As atividades de pesquisa nos parques geralmente são privilégio de pesquisadores que visitam os locais. Mas há exceções. Quando trabalhava no Bororé, Claudionor fez as vezes de acadêmico quando encontrou uma espécie de macaco diferente daquelas que davam as caras nas trilhas e estruturas do parque. Entusiasmado com a novidade, ele tirou uma foto e mandou no grupo com a gestão do parque.

Com isso, Claudionor descobria algo inédito: a espécie de macaco sauá andava frequentando o parque. “Até hoje, quando tem curso, ele [o gestor do parque] fala desse macaco e que é importante a gente tirar foto. Me deram um monte de parabéns, foi legal”, ele conta com um sorriso no rosto.

A ameaça

O embate que as folhas das árvores travam dia e noite no território dos parques naturais há tempos deixou de ser o único conflito encontrado na região. Com a expansão urbana desenfreada, a preservação ambiental na cidade entrou em perigo. No extremo da zona Sul, a situação se agrava, já que, por ser uma região mais pobre, a instalação de moradias irregulares próximas de mananciais se torna uma das únicas e mais baratas opções para uma população distante de programas habitacionais do poder público.

Segundo a Prefeitura de São Paulo, das 3.405 ocorrências atendidas pelas Inspetorias de Defesa Ambiental (IDAM) na capital paulista em 2022, 312 foram em ocupações irregulares.

“[Na zona Sul] Temos a poluição dos córregos pelo tratamento do esgoto que não é coletado, queimada e caça, mas o grande problema é a expansão da habitação desordenada”, descreve Rodrigo Martins, que já foi gestor da Área de Proteção Ambiental (APA) Bororé-Colônia, onde os parques da zona Sul se localizam.

Entre o Bororé e um conjunto de moradias, há alguns metros de terra e de represa. Por isso, a ronda de fiscalização dentro do parque também é feita com bote, por meio do qual os vigilantes já flagraram atividades de pesca irregular.

Conjunto de moradias nos arredores do Parque Natural Municipal do Bororé [Foto: Letícia Gouveia]
Kleber Rodrigues é gestor do Bororé e explica que morar lá, a dezenas de quilômetros do centro da cidade, é mais barato. Com cerca de R$ 30 mil ou até trocando um carro é possível garantir uma moradia. “Por isso se adensa muito aqui”, ele relata.

O Bororé foi outro parque que viu o número de ocorrências aumentar ao longo dos anos. Elas pularam de 24 em 2016 para 210 em 2021. Neste último ano, supressão arbórea, vestígios de fogueira, queda de árvore e caça foram as mais frequentes.

Além desse conflito, há também grandes empreendimentos na região. O Rodoanel é o principal deles. Os Parques Naturais Municipais vieram como compensação ambiental do Rodoanel, construído no início do século. Em outras palavras, o empreendimento teve que abrir espaço nas áreas verdes paulistanas, mas foi obrigado a compensar essa área com a construção dos parques. “Nenhuma compensação é exata, porque há uma perda irreparável, mas a cidade provavelmente não teria esses parques se não fosse o Rodoanel”, afirma Rodrigo.

Durante o período de construção do Trecho Sul do Rodoanel, uma série de estudos apontou os riscos ambientais deste empreendimento. Em maio de 2002, um relatório enviado à SVMA e encomendado pela Companhia Desenvolvimento Rodoviário S.A (Dersa) – responsável pelo empreendimento – indicou que o Rodoanel iria afetar 75 rios. Além disso, 700 hectares seriam atingidos na área que abriga as represas Billings e Guarapiranga. O relatório também apontou um desmatamento de 258 hectares, afetando 1.225 famílias e 98 estabelecimentos comerciais.

Atualmente, o Rodoanel tem uma relação não muito harmônica com os parques. No ouvido de quem frequenta esses espaços, o barulho de pássaros e folhas convive com o som dos automóveis que cruzam o Rodoanel ininterruptamente. Além disso, os vigilantes dos parques contam que a chegada do Rodoanel agravou o risco de incêndios, já que muitos deles são causados por bitucas de cigarro arremessadas da rodovia.

Diante disso tudo, alguns já preveem um futuro nebuloso para as áreas verdes da zona Sul. “Se a gente não segurar [a expansão], ela só vai [avançar]. Daqui uns 15 anos, a gente só vai ter aqui na zona Sul os parques naturais, a terra indígena e o Parque Estadual da Serra do Mar”, prevê Maíra. Ela mesma já teve que mudar de parque por seis meses depois que indivíduos supostamente ligados ao narcotráfico visitaram o Varginha para “cobrar” uma chamada feita à polícia. Os agentes foram acionados por conta de uma construção irregular que estava sendo feita no entorno do parque.

No Varginha, das 992 ocorrências de 2017 a 2022, 76,4% tiveram origem humana, segundo cálculo feito por Babel. Resíduos e supressão arbórea foram as mais frequentes.

As UCs de maneira geral não parecem estar nos planos daqueles que governam. Os anos de 2008 e 2010 foram os que tiveram a maior quantidade de UCs criadas na Mata Atlântica: foram 100 e 96, respectivamente. Em 2022, esse número ficou em 5. Na cidade de São Paulo especificamente, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) prevê a criação de duas UCs até 2024.

Poucas andam sendo criadas e as que já existem aparentam esvaziadas. Das 1.589 UCs na Mata Atlântica, 1.253 não possuem Plano de Manejo, que são documentos técnicos responsáveis por direcionar o uso da área das UCs. Outra grande parte, 1.145, não possui Conselho Gestor. Para o professor Reinaldo, a falta desses conselhos é fatal: “A boa governança desses espaços passa necessariamente pela participação social e popular. Por isso que todos esses espaços na cidade de São Paulo preveem Conselhos Gestores”.