Em busca de uma identidade: A naturalização e miscigenação de jogadores ao longo das Copas

Por Anderson Lima e Caio César Pereira

O que faz uma pessoa ser considerada cidadã de um país? Seriam os aspectos considerados hereditários, como a questão sanguínea, conhecidos como Jus Sanguinis, e adotadas por países do velho continente, como Itália, Espanha e França? Ou seria o direito simplesmente pela nascença em determinado território, ou Jus Solis, mais comum em países que foram colônias, como Brasil, EUA, entre outros?

Tais questões fazem parte de um dilema presente em diversos países ao redor do mundo, e que tem se tornado cada vez mais comum graças ao cada vez mais constante processo de naturalização nos esportes, principalmente, no futebol. 

A Copa do Mundo 2022, sediada no Catar, conta com 137 jogadores naturalizados, o que representa 16,46% do total de jogadores em campo na competição. A própria anfitriã utilizou da naturalização como tentativa de desenvolver o futebol no país. 

Quando comparada à taxa vista na Copa de 2018, disputada na Rússia, há um aumento de 5% no número de naturalizados. Essa porcentagem é a maior já vista em todas as edições da Copa do Mundo, ultrapassando os 13,8% contabilizados em 1990, na Itália. 

Para efeitos de comparação, o menor número registrado de naturalizações em uma Copa do Mundo foi em 1978, na Argentina, com 2,3%. Apesar do número pequeno, foi nessa Copa, por exemplo, que o goleiro argentino Quiroga, naturalizado peruano, levou seis gols da seleção anfitriã, o que fez o jogador receber acusações de propina. O resultado levou a Argentina para a final, e, consequentemente, ao seu primeiro título. Naquele momento, o país enfrentava a repressão da ditadura militar de Jorge Rafael Videla. 

Os atletas de dois países

Nos primórdios da Copa, na década de 1930, a Itália foi o principal foco da naturalização de jogadores. “Em termos de Copa do Mundo, a primeira seleção que fez isso em massa foi Mussolini, com a Itália. Ele tinha aquela ideia de voltar aos tempos de glória do Império Romano e o país, campeão em 34 e 38, resgatou muita gente, principalmente, da América do Sul”, comenta o jornalista e pesquisador, Celso Unzelte, em entrevista à Revista Babel.  

Luis Monti é um desses jogadores americanos que representaram a Itália na Copa em 34 e 38. Após jogar pela Argentina em 30, o atleta decidiu disputar os próximos campeonatos pelo país onde seus pais nasceram, o que fez Monti ser a única pessoa na história a jogar finais de Copa do Mundo por diferentes seleções. A seleção italiana de 34 também conta com o primeiro jogador brasileiro campeão do mundo, Anfilogino Guarisi, conhecido no Brasil como Filó, e na Itália, como Guarisi. 

Naquele momento histórico, as seleções europeias não foram beneficiadas apenas com a naturalização de jogadores sulamericanos, mas também por meio da chegada de atletas nascidos em suas colônias africanas. Um exemplo é o jogador marroquino Larbi Ben Barek, que jogou pela seleção francesa em 1938. 

Victor Figols, editor e colunista do Ludopédio, é Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), e explica à Revista Babel que “existe um fluxo migratório que não está diretamente ligado ao futebol, mas que é perceptível no esporte”. Para ele, a naturalização é uma via de mão dupla: “as tensões geopolíticas encontram lugar no futebol, e o futebol revela as tensões geopolíticas”

Após os anos da Segunda Guerra Mundial, ainda existia tendência de jogadores atuarem por mais de uma seleção e atletas brasileiros como Mazzola e Altafani disputaram o torneio de 62 pela Itália, depois de ganharem a Copa de 1958 pelo Brasil.

Ferenc Puskas, o húngaro que vestiu a camisa da seleção espanhola

Acompanhando os brasileiros, em 62, também houve a participação do argentino Di Stéfano e do húngaro Puskas no time da Espanha. O último foi vice-campeão em 54 pela seleção da Hungria, mas devido à Revolução Húngara ocorrida em 1956, o atleta optou por não retornar ao seu país de origem, sendo naturalizado espanhol em 1961. 

A FIFA decidiu, a partir da Copa de 1966, na Inglaterra, que nenhum jogador que já tivesse atuado por uma seleção em partidas oficiais poderia entrar em campo por outro país. Essa regra só foi quebrada novamente na década de 90, devido à dissolução da Iugoslávia. Os atletas Robert Jarni e Robert Prosinecki disputaram a Copa de 90 pela seleção iugoslava e retornaram aos campos do torneio oito anos depois, ao defenderem as cores da Croácia, país declarado independente em 1991.   

De acordo com regimento atualizado em 2020, se um atleta participar de três jogos por uma seleção antes dos 21 anos, ele não pode mais defender outra nação. Amistosos, em qualquer idade, também estão inseridos na regra.  

A busca por uma melhor estrutura esportiva

Os motivos para um jogador procurar uma naturalização pode variar de acordo com o momento histórico e o contexto pessoal do atleta, mas Unzelte comenta que uma causa possível é o subdesenvolvimento do futebol em países sem estrutura. 

Para ilustrar essa questão, ele cita os jogadores Just Fontaine e Eusébio. O primeiro foi o maior artilheiro de uma única edição de Copa do Mundo, marcando 13 gols em 58. Fontaine era marroquino, nascido em Marrakech, mas se tornou um ídolo na França, país que colonizou sua terra natal. Eusébio, um dos maiores jogadores da história de Portugal, era de Moçambique, outro país colonizado. 

Para Unzelte, ao visualizar uma maior possibilidade de êxito em um país metrópole, o atleta fica tentado em optar pelo país mais poderoso, muitas vezes, a terra que colonizou a nação onde nasceu. 

“Tivemos uma aceleração tardia no desenvolvimento do futebol em clubes africanos. Hoje, há essa questão envolvendo seleções nacionais e clubes de futebol. As nações da África têm protagonistas em grandes ligas do mundo, uma certa tradição. O que não tem são seleções africanas aproveitando o máximo desse potencial”, explica. 

Com a constante migração para o continente europeu, ocorre o fortalecimento das ligas europeias, e com a aceleração vista nos anos 90, até o presidente da FIFA daquela época, Joseph Blatter, se mostrou preocupado com a situação. Em dezembro de 2003, por exemplo, Blatter afirmou que os clubes da Europa estavam praticando ações “pouco saudáveis, se não mesmo desprezíveis”, ao incentivarem o êxodo de jogadores africanos. 

No entanto, na Copa de 2022, uma nação pôde demonstrar um novo caminho no processo de naturalização de jogadores. Marrocos, a primeira seleção africana a chegar às semifinais do torneio, tem 14 jogadores naturalizados, entre eles Achraf Hakimi (Espanha), Hakim Ziyech (Holanda), Sofiane Boufal (França) e Yassine Bounou (Canadá), sendo o time líder nesse quesito. 

Na contramão da história: o retorno à Marrocos, os Leões do Atlas

O território marroquino, ao longo de sua história, teve influência de Espanha, Portugal e França, curiosamente, os adversários enfrentados pela seleção de Marrocos nas fases finais da Copa de 2022. Além disso, devido a contextos fronteiriços, há uma movimentação de marroquinos tentando entrar de forma ilegal na Europa pelo Mar Mediterrâneo.  

“Acho que Marrocos está na contramão da história, porque eles são um time de naturalizados nascidos em outros países pelos quais eles poderiam ter feito a opção [de jogar]. Quem sabe Marrocos não seja um exemplo para outros jogadores e outros países que foram colonizados fazerem a opção pelo seu país de origem, pelo país de origem de seus pais”, declara Unzelte.

Marrocos, a seleção mais “naturalizada” da Copa do Mundo 2022 [Foto: Karim Jaafar/ AFP]

Estamos presenciando um movimento contra-hegemônico? Nas palavras de Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais da FAAP e da FGV, o mundo pode estar vendo um indicativo de que geopoliticamente é possível pensar em contra-hegemonia: o recrutamento de jogadores que não nasceram no país, mas que possuem a nacionalidade em seu sangue, de acordo com a lógica da ancestralidade.  

Outra explicação possível para o retorno desses jogadores aos Leões do Atlas, é a falta de oportunidades nas seleções europeias. Visto como a única forma de disputar um torneio como a Copa do Mundo, o retorno às raízes é um jeito de se manter em destaque.

“É tirar esse foco da questão pessoal e partir para uma questão de motivação. É o sentimento de uma possibilidade de sucesso ao atuar pelo seu país”, comenta Unzelte, afirmando que Marrocos abre uma perspectiva diferente para o futuro. 

Brasil: o exportador de craques naturalizados

No caso do Brasil, nações como Itália, Portugal e China são alguns dos locais que mais importam jogadores para defender suas seleções. Jorginho (Itália), Diego Costa (Espanha), Pepe (Portugal) e Elkeson (China) são exemplos de atletas renomados que atuam por outros países nos dias atuais. 

“O Brasil segue sendo um dos maiores formadores de atletas de alto nível. Isso explica, em parte, o fato de não precisarmos naturalizar jogadores. O futebol brasileiro também é uma referência na exportação. Não por acaso, as principais seleções da Europa já contaram com jogadores brasileiros”, detalha Figols. 

Para Unzelte, não só o Brasil faz isso, mas toda a América Latina. “O trio MSN (Messi-Suárez-Neymar), que fez sucesso recentemente no Barcelona, era formado por um brasileiro, um uruguaio e um argentino. Não somos menos do que ninguém, mas simplesmente não temos o dinheiro”, declara. 

Esse fenômeno de exportar jogadores do Brasil, se deve, muitas vezes, por opção do próprio atleta, visto que a quantidade de jogadores gera uma competição sobre quem vai vestir a camisa da seleção. Parte desse sucesso na produção de jogadores, deve-se ao fato do Brasil ser um país multicultural. Ao olharmos para a composição da seleção brasileira campeã de 1958, vemos uma grande diversidade, em jogadores como Pelé, Didi, Garrincha, Zagallo, Bellini, e etc.

Seleção brasileira de 1958 [Foto: Imortais do Futebol]
Apesar disso, é importante ter cuidado ao associar o sucesso desportivo pela miscigenação a fatores biológicos. “O futebol arte que nós levamos ao mundo inteiro está associado não à condição biológica, por que não há fundamento científico, mas sem dúvida à combinação da diversidade”, reforça Vieira.

O caso da seleção francesa: O sucesso dos “azuis” para além do branco e vermelho

Em mais uma disputa de final de copa, a seleção Francesa pode ser considerada um caso de sucesso. Tal cenário, porém, não reflete toda a sua história. Até a conquista de sua primeira Copa do Mundo, em 1998, com Zinedine Zidane (de ascendência argelina), e Thierry Henry (de ascendência martinicana e guadalupense), a seleção francesa nunca havia sequer chegado a uma final. Para Unzelte, a miscigenação se mostrou como algo determinante para seu sucesso.

“Você vê a própria ascensão da França, que está às portas de um bicampeonato mundial seguido, de um tri campeonato mundial considerando o acumulado com 98. Essa França passou a ser alguém no cenário futebolístico que ela não era nos últimos 25 anos, principalmente por conta da miscigenação.” 

Ele ainda complementa, explicando que se não fosse a presença do elemento principalmente africano na seleção francesa, talvez a França não tivesse tido o sucesso que obteve nos últimos tempos. Mesmo durante a década de 80, comandada por Michel Platini (cuja ascendência é italiana), a seleção francesa ainda era uma coadjuvante no cenário do futebol mundial. 

“Muito se fala hoje da França,  o poder de ter um time multiétnico. Tem desde franceses brancos, como Giroud e Griezmann. Descendentes de espanhóis, como os irmãos  Hernandez, até o Mbappé, de ascendência camaronesa. Eles estão repetindo o que o Brasil fez lá no passado”, acrescenta Vieira.

A seleção francesa campeã do mundo em 2018. [Foto: FIFA]
É importante destacar, entretanto, as diferenças entre o caso marroquino e o francês. Enquanto a seleção de Marrocos naturalizou jogadores, que apesar de possuírem ancestralidade marroquina, são nascidos em outros países, o caso da seleção francesa, ou até mesmo a inglesa, é justamente o contrário. 

Dos 26 jogadores franceses convocados para a Copa do Mundo de 2022, por exemplo, somente 2 são naturalizados. Todos os outros são nascidos em território francês, sendo frutos de uma segunda ou terceira geração de imigrantes.

O gol não está impedido, mas será que a jogada é legal?

À primeira vista, a formação de seleções multiétnicas pode aparentar algo extremamente positivo. A presença de jogadores com origens étnicas e culturais diferentes pode parecer refletir uma sociedade tolerante e inclusiva, em uma clara falsa interpretação da realidade. 

“O maior ponto negativo que as naturalizações podem trazer é o racismo e a xenofobia. Na França, Zidane e Benzema já foram perseguidos por serem de origem argelina. A extrema-direita francesa já atacou a seleção por ‘contar com muitos negros’ no elenco“, aponta Figols.

Apesar da FIFA ter estabelecido regras e mecanismos para que as federações não utilizem da naturalização para forjar suas seleções, esse processo, muitas vezes, ocorre por razões estritamente financeiras. Durante o ciclo de 4 anos entre a Copa de 2018, na Rússia, e a de 2022, no Qatar, a FIFA faturou aproximadamente US$7,5 bilhões (algo em torno de R$ 40,5 bilhões), com cada federação recebendo pelo menos US$10 milhões somente pela participação no torneio.

Para  Unzelte, os jogadores de países da África ou América do Sul, muitas vezes são vistos e tratados como mercadoria, sendo o grande motivador dos países aceitarem jogadores naturalizados. 

“A gente sabe que o futebol é cada vez mais negócio, o grande negócio de lazer do Século 21. Então os jogadores de uma certa maneira são vistos como matéria-prima. Infelizmente, o que acontece em relação aos países da África e da América do Sul, é uma exportação de ‘pé de obra”, aponta.

Apesar disso, Vieira pondera que, apesar de não acabar com o racismo e a xenofobia, uma seleção multiétnica pode, a longo prazo, trazer um efeito mais inclusivo, não somente no âmbito desportivo, mas na sociedade como um todo. 

“Por mais que a França ainda tenha muito racismo, tenha muitas posturas xenofóbicas, não tenho dúvidas que hoje é muito mais ponto pacífico na sociedade francesa ter todos esses descendentes de árabes e africanos subsaarianos no time e serem vistos como franceses de fato, do que era lá em 98”, explica.

Jogadores da seleção inglesa durante a disputa de pênaltis na final da Euro de 2020 [Foto: Laurence Griffiths/ Getty Images]
Outro exemplo recente, foi o caso da Inglaterra durante a Eurocopa de 2020, quando, durante a disputa de penaltis contra a seleção italiana, dois jogadores negros da seleção britânica perderam suas penalidades.

“Obviamente que é uma sociedade bem racista e xenófoba, e esse exemplo está aí para mostrar isso. [Mas] gostemos ou não, por mais que eles sejam bastante xenófobos, eles talvez já estejam superando a questão da aparência, vide o primeiro-ministro descendente de indianos, Rishi Sunak”, exemplifica Vieira. 

Por fim, Vieira ressalta que, mesmo aqui no Brasil, ainda  sendo uma sociedade bastante racista, não fosse o Pelé, em 58, talvez, a situação de minorias étnicas e raciais no Brasil, seria muito pior, pelo menos do ponto de vista discursivo da inclusão e da identidade nacional.  

“Isso é uma mensagem positiva que você passa para o mundo ainda que grande parte das pessoas do mundo não tenham ideia do quanto isso tem a ver com dinheiro”, conclui Unzelte.