A inteligência artificial produz mais arte do que nunca. E isso pode ser um problema.

Retrato de Edmond Belamy, 2018

Em 2018, a obra “Retrato de Edmond Belamy” foi vendida na reputada casa de leilões Christie’s, nos Estados Unidos, por aproximadamente R$ 1,6 milhão. A pintura, caracterizada por traços desfocados e feitos majoritariamente nas cores preta, branca e bege, não apresenta nenhum elemento visualmente marcante, à exceção de uma pequena equação logarítmica presente no canto inferior direito da imagem. 

Seu alto valor não se deve a razões estéticas. Edmond Belamy, na verdade, nem existiu: seu retrato foi criado por um algoritmo chamado GAN, sigla em inglês para rede generativa adversarial. Foi a primeira obra produzida por inteligência artificial (IA) a ser vendida no meio dos leilões. Foi também um dos grandes responsáveis por originar o debate a respeito do papel dessas tecnologias no campo da arte. 

A discussão vem se tornando ainda mais ampla com a popularização das ferramentas de IA. Usá-las é bastante simples: o Midjourney, por exemplo, exige apenas que você faça uma descrição da imagem desejada. Com as informações, gera quatro protótipos em poucos segundos. O usuário pode, então, selecionar uma das obras para que o algoritmo aumente a resolução ou crie novas versões baseadas na escolhida. 

Além do Midjourney, ferramentas como o DALL-E 2 e o Stable Diffusion também chamaram a atenção de milhões de pessoas ao redor do mundo. O funcionamento delas é bastante similar, seguindo a mesma lógica de produção de imagens via comando textual e usando as mesmas plataformas.

Peças produzidas pelo Midjourney a partir da descrição "Capitã pirata observa o por do sol"
Peças produzidas pelo Midjourney a partir da descrição “Capitã pirata observa o por do sol”

Para os entusiastas, esse tipo de tecnologia é bastante positivo: pode ser usado para ajudar a explorar novos designs, identidades visuais, bem como para ilustrar ideias que, de outra forma, talvez nunca fossem materializadas – tudo de forma muito rápida e acessível. 

Tiago Fernandes, artista visual dono do perfil @box.tiago no Instagram, é uma dessas pessoas. Embora não faça uso da inteligência artificial em suas produções, Tiago defende seu papel por um viés de democratização. “Por mais que entenda a preocupação que muita gente anda tendo, eu acho positivo pensar pelo lado de que, pra quem não é artista e não tem dinheiro pra pagar pela produção de uma peça autoral, essas tecnologias permitem um exercício da imaginação”, afirma. 

O artista ainda adiciona: “considero a descrição perfeita da imagem desejada uma habilidade por si só”. 

Por outro lado, as inteligências artificiais também são motivo de apreensão para outros artistas. A quem é atribuída a autoria das peças produzidas por elas? A partir do momento que qualquer pessoa pode gerar criações elaboradas a partir de comandos simples, por que alguém pagaria por obras de arte?

Carlos Viana da Silva, mestre em Design pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e doutorando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é menos pessimista. “Sempre que surge uma nova tecnologia há esse medo da substituição. Foi assim com a fotografia e com a internet”, comenta. E completa: “Encaro as imagens geradas por IA como mais uma ferramenta a ser compreendida nas competências dos artistas visuais”.

Apesar disso, a tomada de espaço por parte desse novo setor preocupa não só pela qualidade com que elas podem cumprir as instruções solicitadas, mas pela velocidade e quantidade. 

O volume de conteúdo gerado por IA tem crescido com tanta rapidez que algumas plataformas de arte digital já começaram a impor restrições contra esses algoritmos a fim de proteger os artistas humanos.

Em suas diretrizes de uso, a plataforma Newgrounds, referência em entretenimento online e palco de produções de milhões de usuários, estabelece que não é permitido fazer o upload de peças produzidas por IA no site. O informe é claro: “queremos manter o foco em arte produzida por pessoas, e não ter o portal inundado com arte gerada por computadores”.

Outros sites, como o Inkblot e o Fur Affinity, seguiram passos similares, e também determinaram a proibição desse conteúdo em suas respectivas plataformas. As duas plataformas mais conhecidas da comunidade, contudo – ArtStation e DeviantArt –, ainda não se pronunciaram a respeito do tema.

O embate não é somente econômico: os processos por trás desses algoritmos também levantam dilemas éticos. Isso porque, de forma geral, as inteligências artificiais aprendem a exercer suas funções a partir de informações fornecidas pelos programadores – uma espécie de base de dados. 

No caso do Retrato de Edmond Belamy, por exemplo, a rede generativa adversarial teve como referência 15.000 retratos de épocas e artistas variados, abrangendo obras dos séculos 14 ao 19. O Midjourney, por sua vez, conta com milhões de obras em seu banco. 

Daí a crítica de que esse tipo de tecnologia seria, fundamentalmente, uma forma elaborada de plágio. A máquina só consegue montar suas peças a partir da apropriação de outras obras, às quais não costumam ser atribuídos créditos. 

Para Pedro Campos, Mestre em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica pela PUC-Rio e especialista em propriedade intelectual, o uso do termo é equivocado: “o plágio, juridicamente falando, ele ocorre quando um indivíduo tenta se passar pelo criador de uma obra que ele não criou”, explica. 

“Eu não consigo imaginar uma hipótese em que uma inteligência artificial teria a intenção de se passar por uma pessoa, ou pelo criador de uma determinada obra. É mais provável que tenha um caso de infração de direitos autorais, de uma IA receber obras que são protegidas por direitos autorais, que não fazem parte do domínio público, e acabar usando essa criação como base de forma muito densa, se tornando uma infração”, finaliza o advogado.

De acordo com a Lei de Direitos Autorais n° 9.610, de fevereiro de 1998, só pode ser considerado autor a pessoa física criadora. Obras criadas por inteligências artificiais, nesse sentido, são consideradas como fundo comum ou simplesmente domínio público.

Outro ponto de conflito diz respeito à composição desses bancos de dados. Isso porque, dependendo das informações incluídas, os algoritmos podem aprender a executar suas funções sob certos vieses. O site Al Gahaku, por exemplo, foi alvo de controvérsia no começo de 2020, após usuários repararem que a IA tinha um viés racial. 

A proposta do site é baseada no envio de uma foto que é, então, transformada em pinturas de diversos estilos artísticos pelo algoritmo do Gahaku. Com a popularização da ferramenta, muitos relatos de usuários não brancos surgiram nas redes sociais, com reclamações ligadas ao fato de a inteligência artificial tentar sempre atribuir traços mais “europetizados” às imagens. O caso não é isolado, e é chamado por pesquisadores da área de “racismo algorítmico”.

“Os algoritmos têm uma tendência a serem discriminatórios porque eles aprendem com uma fonte discriminatória que são os seres humanos”, explica Campos. “Então a gente vai ter criações, assim como qualquer outro tipo de criação, que vão acabar refletindo esses preconceitos. O Direito também vai ter que acabar lidando com isso. Se uma inteligência artificial gera uma obra racista, quem responde pelos danos coletivos causados por essa obra?”, questiona.

Há, ainda, uma questão ligada ao chamado “mérito artístico”: muitos dos que são avessos à introdução da inteligência artificial nesse campo reforçam que artistas humanos levam horas ou dias para produzir suas obras, além dos anos investidos para aprender e dominar as técnicas necessárias para a execução de determinados estilos e do trabalho criativo envolvido na prática. 

Ferramentas como o Midjourney e o DALL-E, por outro lado, se baseiam em códigos para executar os comandos e criar imagens com rapidez. Na visão do professor Carlos Viana, isso as descategoriza como criativas. “A IA é uma ferramenta que ainda necessita de inputs humanos”, explica. “Ou seja, a criatividade ainda é do ser humano, enquanto ela apenas reproduz padrões abastecidos pelas pessoas”.

Esse fator adquiriu grande destaque em setembro de 2022, com a vitória de Jason M. Allen no concurso de artistas digitais emergentes da Feira Estadual do Colorado. Ao contrário do comumente observado em competições do tipo, Allen, que trabalha com a fabricação de jogos de tabuleiro, não usou ferramentas tradicionais para a montagem de sua peça vencedora, “Théâtre d’Opéra Spatial”. 

Na verdade, a obra foi criada com o Midjourney, o que causou revolta em centenas de membros da comunidade artística. Allen, em contrapartida, reforça: “eu ganhei. E não quebrei nenhuma regra”.

Théâtre d'Opéra Spatial, obra produzida pela inteligência artificial Midjourney a partir de comando desconhecido dado pelo americano Jason M. Allen
Théâtre d’Opéra Spatial, obra produzida pela inteligência artificial Midjourney a partir de comando desconhecido dado pelo americano Jason M. Allen