Tcheca com tcheca: o que está por traz do hit

O mashup que misturou Say So de Doja Cat com Danny Bond, cantora trans nordestina, reflete a industria musical contemporânea

Por Daniel Terra e João Gabriel Telles

 

A partir do instante em que você dá play, vai crescendo uma batidinha pop suave, produzindo um ambiente pretensiosamente leve; é como se você já soubesse o que vem pela frente: em suma, uma música que todos já ouviram alguma vez no shopping. Mas antes mesmo dos primeiros dez segundos, um anúncio desvirtua a mensagem, e ele vem numa voz um tanto quanto estridente. “Isso é Danny Bond!”

Não, aquela batida anódina não pausa de repente numa freada do disco do DJ; ela continua, surge então um refrão cantado em inglês que passa despercebido, e novamente você se surpreende com os versos que se seguem: 

“Tcheca com tcheca

balança essa perereca

o meu nome é Danny Bond

e eu tenho uma pepeca

Se você não acredita,

vou mostrar para você.

Mas quando eu mostrar,

você vai ter que lamber

Não vem com desculpinha,

não vem com piadinha

Eu faço o que eu quiser

porque a tcheca é minha”

Com rimas alternadas e redondilhas maiores (falhas em alguns versos, mas predominantes na maioria das estrofes) que remetem à estrutura de quadras poéticas, e um tom agressivo, ou melhor, afrontoso, que lembra composições de rap, a cantora trans Danny Bond alçou seu órgão sexual a uma fama raras vezes vista na história recente da música brasileira. 

 

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Lançada no álbum “Epica”, de 2017, a letra de “Tcheca” estourou mesmo três anos depois, quando foi relançada na versão de um mashup, uma espécie de remix que mistura duas músicas diferentes para criar uma terceira. Em vez do ritmo brega funk da canção original, adicionou-se a base pop retrô de “Say So”, de Doja Cat, cuja voz também pode ser ouvida ao fundo cantando o refrão — de “Say So”, não de “Tcheca”.

O resultado, o vídeo “Danny Bond x Doja Cat | Tcheca x Say So”, que rapidamente chegou a milhões de espectadores no YouTube e no TikTok, só foi possível porque Kika Boom, cantora drag queen e amiga de Bond, afirmou numa live que qualquer música fica boa quando tocada em cima do hit da artista californiana. A partir da dica, Bond convidou um colega em comum para realizar a colagem com sua música, o DJ e produtor S4TAN. 

Natural de Santo André, município da região metropolitana de São Paulo, o jovem de 27 anos preferiu não revelar o nome à reportagem. Instado pela amiga, ele conta que à época ficou com o pé atrás, pois não achava que o mashup faria sucesso. Ele mudou de ideia — ou melhor, foi finalmente convencido — quando a sugestão parou nas redes sociais, “aí as pessoas encheram minha inbox pedindo para eu fazer o mashup”, e ele fez.

Embora fale sobre a música com orgulho, S4TAN não demonstra, em entrevista por Zoom, grande empolgação. Isso porque, poucos meses após o sucesso inicial de “Tcheca x Say So”, a produtora de Doja Cat queixou-se ao YouTube, que derrubou o canal do DJ, tirando do ar o vídeo com o mashup, que até então somava mais de dois milhões de visualizações, um número animador para uma produção independente. O vídeo ficou um bom tempo fora do ar e teve seu sucesso interrompido abruptamente, visto que o YouTube é uma das principais plataformas de consumo de música da internet. 

S4TAN, portanto, teve de criar outro canal, o “Mashuka”, pelo qual relançou o famoso remix, que hoje contabiliza cerca de 4,2 milhões de visualizações, ainda que, como ele afirma, esse número a rigor seja bem maior, pois no período em que esteve banido surgiram diversos canais paralelos que republicaram o vídeo, dissipando a audiência.

“Os mashups que faço não dão nenhum impulsionamento ao meu trabalho hoje, porque eles não mostram a minha produção musical. Com mashups, não ganho nenhum dinheiro”, ele afirma, contrariando a intuição de quem o conhece apenas pelo seu trabalho mais famoso. Sua renda atual, ele diz, vem sobretudo da produção e edição de shows e de músicas suas ou de quem o contrata.

“Eu ainda faço [mashups], mas é pelo gosto, porque eu gosto de fazer isso e continuo produzindo. São coisas que meus seguidores também gostam. Tanto que, hoje, eu posto esporadicamente: não faço toda semana, a cada quinze dias. Eu posto uma vez no mês ou uma vez a cada dois meses, quando surge alguma ideia e eu falo ‘Nossa, esse aqui ficou muito legal!’.” 

Um hit instantâneo formado a partir de duas canções que aparentemente não têm nada a ver; um grande impulsionamento através de redes sociais; a denúncia de uma das partes que se julga vítima de plágio; o banimento por parte da plataforma que popularizou o produto. A soma de elementos desse caso não deixa dúvidas: a história de “Danny Bond x Doja Cat | Tcheca x Say So” é uma ilustração fiel do estágio contemporâneo da indústria cultural, no qual conteúdos são facilmente produzidos, facilmente editados, e cujas autorias são constantemente questionadas.

‘Everything Is a Remix’

O termo “indústria cultural” foi empregado pela primeira vez pelos filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento”, publicado em 1949. Pedra angular do grupo de pensadores que ficou conhecido como Escola de Frankfurt, o livro foi uma das obras que primeiro e melhor discutiu a imitação e a repetição de fórmulas que já vigoravam nos produtos culturais da época. De tendência marxista, os autores também tinham um olhar bastante crítico sobre as transformações pelas quais passavam os meios de comunicação, cada vez mais soterrados pela lógica capitalista de mercado. 

Mais de 70 anos depois, o conceito criado pelos intelectuais que se instalaram nos Estados Unidos fugindo do nazismo tem suas definições atualizadas a partir da emergência da internet. Agora, não se trata mais de meio, mas de softwares; não se trata mais de reprodução ou imitação, mas de remix, samples e mashups. Talvez Adorno e Horkheimer não fizessem ideia da influência que o meio viria a ter sobre as criações culturais. Já Marshal McLuhan, intelectual candense que prosseguiu os estudos inaugurados por essa escola de pensamento, talvez já imaginasse o que estava por vir quando escreveu o famoso lema: “O meio é a mensagem”. Fato é que estavam ali descritas as bases do sistema de produção cultural que impera atualmente.

Considerando que Adorno criticava o jazz, gênero musical avaliado pelo filósofo nos anos 1950 como produto de baixíssimo valor artístico e atualmente associado à alta cultura, pode-se imaginar o que ele diria quando os DJs novaiorquinos do Bronx Grandmaster Flash e Kool Herc misturaram batidas de diferentes músicas sobre rimas improvisadas, inaugurando as cenas do hip-hop e do rap nos anos 1970. Não demorou até essa espécie de enxerto musical ganhar outros gêneros como o R&B e o funk. Nascia então o sampleamento.

Tal inovação, ensejada pelo surgimento das chamadas “turntables”, isto é, aquelas mesas com toca-discos pilotadas por DJs, revolucionaria a história da música ao permitir a alguém que não soubesse tocar nenhum instrumento criar novas músicas a partir de outras preexistentes.

Essa é, em linhas gerais, a tese da série documental “Everything Is a Remix”, criada entre 2010 e 2012 por Kirby Ferguson, que defende que a prática de copiar, transformar e recombinar é uma das bases da cultura ocidental. Tomando a música pop americana como fio condutor da narrativa, o filme mostra como os samples tornaram-se mais complexos e ecléticos à medida que se popularizaram.

Formado em 1982, o grupo Public Enemy ficou conhecido por ser um dos primeiros a adicionar não apenas sons melódicos em suas canções, mas também falas, barulhos e trechos de discursos, o que desde logo acarretou acusações de plágio e contendas judiciais. Na letra de “Caught, Can We Get a Witness”, de 1988, o vocalista Chuck D diz: “Flagrado, agora no tribunal porque eu roubei uma batida / Este é um esporte de sampling”.

Um caso exemplar exposto no filme é o da banda francesa Daft Punk, cujo hit “One More Time”, lançado em 2000, é fruto da recombinação integral da melodia de “More Spell on You”, faixa do álbum homônimo do cantor soul Eddie Jones, lançado em 1979. 

Em poucos anos, a internet estaria disseminada, aumentando ainda mais o acesso praticamente infinito ao acervo universal de todas as músicas já gravadas. Um dos primeiros a se aproveitar de tal contexto foi Gregg Gillis, artista americano por trás de Girl Talk. Engenheiro biomédico de formação, Gillis se especializou paralelamente em fazer remixes e tornou-se um mestre do mashup. Girl Talk é o nome que deu ao projeto que o celebrizou e que consistia numa série de álbuns flagrantemente copiados feitos para serem baixados online de graça. Com o propósito de desafiar o conceito de propriedade no universo da música, cada uma das músicas foi feita a partir de mashups de inúmeros  artistas famosos sem que fosse pedido qualquer permissão pelo uso. É o que ele faz ao juntar, por exemplo, “New Soul”, a música mais famosa da franco-israelense Yael Naim, com “Get Me Bodied”, de Beyoncé, redundando num trecho da canção “No Pause”. 

Também considerado mestre na arte do remix, o rapper Kanye West — agora rebatizado Ye — mudou a trajetória recente do hip-hop ao resgatar o autotune, recurso que altera a voz modulando-a à maneira como o artista quiser, e principalmente ao misturar gêneros que parecem inconciliáveis em canções que alcançam resultados surpreendentes. É o que acontece na faixa “Famous”, do disco “Life of Pablo”, de 2016, em cujo trecho final o reggae de Sister Nancy é combinado com Nina Simone, que “faz um dueto” com Rihanna. 

Nada se cria, tudo se transforma?

Em “Cultura Digital entre Distribuição e Remix”, os professores Peter Krapp, da Universidade da Califórnia, e Gustavo Fischer, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), constroem um histórico da chamada “softwarização da cultura”. No artigo, publicado na revista Fronteiras em 2020, os autores argumentam que se, por um lado, a cópia de conteúdos aconteceu em todas as épocas, por outro, o computador — seja ele um desktop, notebook ou celular — é atualmente não só obrigatório para produzir cultura, mas a condiciona.

Permitindo não apenas o acesso como também a manipulação de músicas, vídeos, imagens e textos, o software — ou os programas de computador, em outras palavras — tornaram-se, de certo modo, autores. Conforme explica Gustavo Fischer em entrevista à reportagem, “essa ideia de recortar e colar, essa funcionalidade quase banal que usamos no nosso dia a dia, contém na verdade um gesto estético, no sentido de que hoje muita gente manipula e modifica conteúdos para lançá-los num novo contexto” — e exibi-los sem se preocupar em parecer original.

No universo da música, tais interferências tecnológicas são visíveis. “A gente está numa época um tanto paradoxal, por causa desse acesso total à memória audiovisual e sonora que está disponível a partir da internet. A gente tem a impressão de que o tempo se achatou”, diz Marcelo Bergamin Conter, que realizou um doutorado sobre como o gênero musical lo-fi foi impactado pela baixa definição dos materiais de gravação das músicas.

Ele explica que, a partir dos anos 2000, é possível dizer que houve uma tendência de rever movimentos da música do século 20 e reproduzi-los com uma “cara nova”. A banda Strokes revisitou o punk rock americano dos anos 1970, já Amy Winehouse revisitou o jazz e o blues dos anos 1950, para citar dois músicos célebres. E quanto mais jovens os artistas, mais distantes são essas referências, o que faz com que eles criem canções a partir de uma espécie de nostalgia do que não viveram. 

“A gente alimenta o computador como se ele fosse a partitura, como um pintor que mexe na obra até que as sensações que ele gostaria de expressar surjam”, afirma Conter.

Compondo letras e melodias a partir do quarto, o artista contemporâneo não tem como fugir da internet — o jeito é fazer mão da reprodução e abusar da ironia para tentar criar algo novo. 

Nesse estado em que “nada está à salvo” da intervenção alheia, em que tudo torna-se possível de editar, surge a pergunta inevitável: como regular os direitos autorais? Com suas produções disponíveis no torrent, no 4shared ou outros sites de download gratuito, os autores continuarão tendo ânimo para continuar a compor? Ou, num jargão do mundo do direito, como fazer vigorar o Artigo 1, Seção 8 da constituição dos Estados Unidos, segundo o qual se deve “promover o progresso da ciência e das artes úteis, assegurando por tempo limitado aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus respectivos escritos e descobertas”? 

E mais: estaria a criatividade em risco com tamanho “copia e cola”? Estaria a cultura, e a música em particular, fadada a um futuro feito de sucessivos passados?

Longe de propor respostas a essa questão, mas encarando-as de frente do ponto de vista criativo, artistas que se dedicam à criação de remix, mashups e samples provocam o status de permanência das obras de arte e nos lembram que, se algum dia a criatividade foi propriedade, esse tempo acabou.