Avançado: a segurança dos ex-presidentes do Brasil

Dos perrengues nos plantões às imitações de FHC, os bastidores, a rotina e causos da vida no coração da República

Por Diego Macedo

Já era madrugada de domingo quando um jato particular fretado partiu do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda, em direção à Guarulhos, São Paulo. A bordo, Fernando Henrique Cardoso, seu filho Paulo Henrique Cardoso, um assessor e uma comissária, além de dois seguranças. Visitante frequente do continente africano, o já então ex-presidente da República havia ido à capital de Angola para uma conferência sobre a integração com o Brasil. Após um cronograma de 5 dias cheio de eventos e formalidades, FHC participou de uma recepção na embaixada brasileira, onde degustou de iguarias locais baseadas em frutos do mar, seguindo então para o aeroporto.

Assim que o avião levantou voo e as luzes se apagaram, Fernando Henrique começou a passar mal. Sentados no banco de trás, os dois seguranças notaram que havia algo errado quando o ex-presidente foi ao banheiro. “O chefe tá estranho”, disse um para o outro, indo então atrás dele. FHC começou a ter diarreia e vômitos violentos, possivelmente como reação à alguma comida estragada, passando mais de uma hora soltando líquido pelo corpo. Água, chá, café, nada parava em seu organismo. Com o jato já sobre o Oceano Atlântico – e considerando o fato de que Angola não era referência em medicina – voltar não era uma opção e não havia o que fazer. Socorrido pelos seguranças e pela aeromoça, que usava panos, toalhas e até fronhas e lençóis para limpar a sujeira, o ex-presidente entrou em choque durante o voo.

Em determinado momento, Fernando Henrique desfaleceu. Com os olhos revirados para cima, a cabeça encostada em um dos seguranças, que esbofeteava seu rosto desesperadamente, FHC apagou. Não respondia a nenhum estímulo, nem aos apelos da comissária, a essa altura toda descabelada e suja também. “Será que ele morreu?”, perguntou o outro segurança. Ninguém respondeu. Silêncio. Aos poucos…o ex-presidente voltou a si. “Puxa, acho que eu dormi um pouco”, disse. Do avião, o assessor ligou para os médicos em São Paulo, que já preparavam soros e todo o atendimento na cabeceira da pista. Ainda assustados, os seguranças procuravam dar o máximo de conforto a Fernando Henrique em meio às poltronas. Em Cumbica, enquanto descia do avião e meio sem graça pelo incômodo durante a viagem, FHC agradeceu a ajuda deles.

Pouca gente sabe, mas terminado o mandato, o presidente no Brasil tem direito a utilizar os serviços de quatro servidores, destinados à sua segurança pessoal, além de dois veículos oficiais com motoristas, com as despesas custeadas pela própria Presidência da República. É algo garantido por lei, está na Constituição de 1988. E ao contrário do que possa parecer, a rotina desses profissionais é até bem movimentada, com muita emoção e vários casos para contar. Essa é a história desses seguranças, particularmente a desses dois que estiveram no voo de Angola: Roberto Bueno Fontana, o Fontana, sargento da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo; e Augusto Souza de Sá, o Sá, tenente da PM de SP – e, coincidentemente, meu padrasto.

A rua e o chamado à ação

“Pega ladrão!”, gritou uma mulher no terminal de ônibus de Santana, zona norte de são Paulo. Era 1989 e aquela região não era muito segura para senhoras distraídas com suas bolsas (como até hoje não é). Tinha apenas sete anos de idade, mas lembro claramente da cena e de como o Augusto – ou “Guto” como chamávamos ele então, se portou nessa ocasião. Havíamos ido ao “centro” (qualquer lugar longe do bairro era “centro” para os antigos) e paramos para comer alguma coisa antes de voltar para casa. Assim que ouviu o grito da mulher, Guto começou a sondar ao redor e identificou o meliante atravessando as filas dos ônibus na diagonal, no meio de um monte de gente. Antes que percebêssemos, ele já tinha corrido em direção ao assaltante e, de repente – Zás! – com uma rasteira, botou-o no chão. Guto pegou a bolsa roubada e devolveu à dona. Aos olhos de uma criança, aquilo foi mágica. Como se faz isso?

“Se você não gostar, se você não sair com vontade de trabalhar, se não estiver no seu sangue, você não enxerga dessa forma e não faz nada”, afirma Fontana. Para ele, esse instinto, o treinamento da polícia e todo o trabalho nas ruas foram determinantes para suas carreiras, posteriormente como seguranças presidenciais. “Isso é o que mais faz o polícia jovem. Você só deixa de fazer isso quando fica velho e começa a pensar duas vezes, porque sabe que a porrada é maior se fizer coisa errada”. E, de fato, Sá era jovem então, ainda em seus primeiros anos de PM. Depois de trabalhar um tempo como contínuo em um banco, entrou na corporação em parte por vocação, em parte por falta de opção mesmo, começando pelo cargo mais baixo que há (o de soldado raso) e trabalhando no policiamento de rua.

Já Fontana, nascido e criado na Mooca, queria ser bombeiro quando criança. Após trabalhar por um tempo numa empresa de tecelagem, já um pouco mais velho se encantou pela polícia. Soldado formado, tentou trabalhar na Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas), mas por falta de vaga, acabou indo parar no policiamento do Trânsito, no 1º batalhão (centro de São Paulo). Lá Fontana se destacou por mérito próprio, mas também por conta do acaso. Durante uma ronda, sua equipe presenciou um assalto a uma agência do Unibanco na Avenida Alcântara Machado, partindo em perseguição a um Voyage com 5 elementos dentro e já pedindo ajuda com o “caneco” (rádio). Por conhecer o bairro, Fontana orientou a equipe a bloquear os assaltantes de surpresa em uma rua sem saída e aí começou o tiroteio.

Foram 29 tiros em sua viatura, sendo que um deles pegou em sua cabeça. Fontana ainda conseguiu atirar no Voyage, que fugiu sem ser identificado. Uma equipe da Rota chegou à ocorrência, apurou o que aconteceu e prestou suporte aos policiais baleados, escoltando-os até o hospital. Fontana passou por uma cirurgia e ficou mais de um ano parado, tendo perdido temporariamente a visão e os movimentos do lado direito do corpo. Quando voltou, não queria saber mais de Trânsito e procurou a Rota. Nesse meio, a própria Rota lembrou do acontecido e reivindicou o profissional ao policiamento do Trânsito, que o cedeu por meio de permuta (algo bem comum no meio militar). Fontana ficou sete anos na Rota e só saiu para ir para a segurança da Presidência da República.

“Trabalhar na rua era difícil, mas hoje é pior. Antes o calibre maior era uma metralhadora ou uma calibre 12. Hoje é fuzil, automática, semiautomática. Hoje existe facção, PCC; antes não. E antigamente tinha algo que pesava muito, mas que hoje eles não têm: medo da polícia”, compara Fontana. Menciono para ele os vários casos do Augusto infiltrado em favelas, por exemplo, e o segurança confirma o risco que sempre existiu, mas ressalta a experiência inestimável que a rua traz ao profissional. “Na escola você só aprende a teoria, pratica com o amiguinho como desarmar o bandido. É no dia a dia da rua – e tendo isso no sangue – que você aprende e faz isso que o Sá fez. E não é por honra, glória, nada disso, não. É por querer parar o errado. Essa visão de rua é algo que militar de quartel não tem”, explica.

A política e o chamado da Presidência

1994 foi um ano emblemático para o Brasil e daqueles difíceis de esquecer. Em questão de meses, os brasileiros choraram a morte de Ayrton Senna, comemoraram a conquista de uma Copa do Mundo de futebol após 24 anos, e votaram mais uma vez para presidente. Fernando Henrique Cardoso foi eleito, muito em função do controle da inflação que assolava o país há mais de uma década e do sucesso do Plano Real, por ele liderado. E sua chegada mudou inclusive o formato da segurança presidencial. Se antes as equipes eram criadas e coordenadas tendo Brasília como base, agora era necessário (e até recomendável) que profissionais de outras praças fossem convocados. O presidente da República era um ativo da União, por assim dizer, e todos os Estados eram responsáveis por sua segurança. E com FHC tendo sua família e base eleitoral em São Paulo, era natural que viessem daí a maioria dos escolhidos.

O Exército mandou uma carta então ao comando geral da Polícia Militar de São Paulo solicitando a indicação de dez dos seus melhores oficiais, que tivessem bom comportamento e capacidade técnica para a representar a corporação em Brasília. Dentre esses dez oficiais estavam Fontana e Sá, que receberam os ofícios em seus quartéis. Convocados para se apresentar formalmente, nem um nem outro tinham um recurso básico para seguranças: terno. “Eu odiava terno. Isso pra mim era coisa de banqueiro, advogado, não de polícia…além da farda, a gente só usava camiseta, calça jeans, tênis”, lembra Fontana. Também lembro de meu padrasto tendo de ir comprar um terno e a estranheza de vê-lo pela primeira vez com aquela roupa. Foi no dia da apresentação que ambos se conheceram.

Assim que foram escolhidos, os profissionais foram afastados da escala de rotina da PM e passaram a responder para a segurança da Presidência da República, se deslocando então para a Brasília para o curso de formação. A mudança da rua para a nova função não foi de todo simples, já que o trabalho de segurança é muito mais mental e estratégico do que possa parecer. Enquanto na rua o foco não é constante e o perigo podevir de qualquer lugar, na segurança a atenção é constante e se concentra em algo muito preciso: na autoridade. “Nós somos ensinados que nada deve chegar na autoridade. Se alguém quiser agredir, alterar a voz ou mesmo atirar no presidente, com a visão periférica lá de trás, você pode se interpor, jogar ele no chão, etc. Quer dizer, a pegada é diferente”, descreve. Fontana ainda destaca que, apesar de não haver um histórico de atentados no Brasil contra presidentes, os seguranças estão armados e precavidos. “Até repórter que chega importunando, enfiando o microfone no rosto, nós ficamos atentos. Mas isso aí é o café pequeno para nós”, brinca.

E aqui aparece um processo importante que é básico na rotina dos seguranças, em qualquer lugar do mundo: o avançado. Trata-se de um reconhecimento prévio da segurança em função da agenda da autoridade, com protocolos específicos definido por cada país (geralmente, com um risco de nível 5, que é o de um possível atentado). Mesmo um ex-presidente também conta com esse processo, que demanda conhecimento de tudo ele irá fazer em um dia: o hotel em que ele irá ficar, o espaço de exposição onde irá falar, qual é o assunto, quem vai recebê-lo, etc. Envolve ainda conhecer e analisar com antecedência todo o trajeto da autoridade durante uma atividade: qual caminho o carro irá fazer desde o aeroporto, a chegada, os locais por onde irá andar, a volta e possíveis alternativas. “Nós já passamos com o Fernando Henrique nos bastidores de hotéis e eventos, por dentro de almoxarifados e cozinhas, por exemplo. Nós avisávamos: ‘ó, presidente, a gente vai passar por um local meio feio, mas é o melhor caminho para você evitar o tumulto lá fora’. Ele jamais reclamou e até ficava feliz, cumprimentando todo mundo”, conta Fontana. Na maioria das vezes, é preciso ter pelo menos duas alternativas de rota na manga, para evitar qualquer imprevisto.

O trabalho da segurança presidencial no Brasil é extensivo aos seus familiares e, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, o trabalho de Fontana e Sá foi basicamente junto aos filhos e netos do presidente que viviam em São Paulo. Já no começo do segundo mandato, uma de suas filhas (Beatriz Cardoso) se mudou para o Rio de Janeiro e parte da equipe – incluindo Fontana e Sá – foi deslocada para fazer a segurança do jurista e ex-desembargador Walter Maierovitch, então secretário nacional Anti-Drogas do governo FHC. Contudo, Maierovitch tinha uma família bem grande com quatro filhos, sendo dois deles excepcionais e que demandavam cuidados específicos. A agenda apertada de tarefas e o afastamento da rotina presidencial em si desanimou os seguranças. Fontana aproveitou a amizade com profissionais do Detran e pediu o deslocamento para o órgão. Sá fez o mesmo, mas solicitando transferência para a Polícia Florestal. Ele já havia casado com minha mãe e minha irmã, Laura, não tinha nem um ano de idade.

Lula, problemas na equipe e mudanças

Corta para 2003. Vania Trevisan estava correndo na pista de atletismo na Escola de Educação Física de Polícia Militar de São Paulo, no bairro do Pari, quando ouviu uma voz lhe chamando de longe. “Vania!”. Era o marido de uma amiga sua, que a reconheceu durante o curso que ali estava sendo ministrado. Vania era sargento da PM e trabalhava na área ensino da corporação, com as unidades de escola que ministram os cursos de formação de soldado. “Pô, Vania, você não vai fazer o teste? Tá todo mundo da Presidência aí, a equipe vai ser aumentada”, contou o amigo. Vania já havia sido indicada e feito um teste para a segurança presidencial no passado – na mesma época que Sá e Fontana –, mas não foi aprovada (depois descobriu que foi preterida em função de outra oficial por já ter filhos na época). Porém, sua ficha ficou guardada na Presidência da República e, quando a oportunidade pintou novamente, no acaso ali na pista de atletismo, ela não pensou duas vezes.

Com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva um ano antes, as equipes de segurança de fato tiveram de aumentar da noite para o dia, já que a família de Lula era muito maior que a de FHC, com quase o dobro de filhos e enteados e, consequentemente, genros, noras e netos, quase todos morando no ABC. Ao mesmo tempo, também houve movimentações na equipe anterior, que teve de decidir quem iria continuar com o presidente FHC e sua família e quem iria ser transferido para o trabalho em São Bernardo. Fontana e Sá, que já haviam voltado para a segurança presidencial, habilitaram-se como voluntários para compor a equipe de Fernando Henrique. Na época, foi feita uma lista com possíveis nomes, que seriam enviados para a escolha da família do futuro ex-presidente. No entanto, quem de fato escolhia esses nomes era o general militar superior na ocasião e que, enciumado com o sucesso dos militares no trabalho com FHC, retirou o nome dos dois seguranças.

Fontana ainda pode voltar a equipe, por um pedido direto da esposa de Fernando Henrique, Ruth Cardoso, que estranhou o fato do segurança não estar na lista. Já com Augusto não aconteceu o mesmo: ele foi deslocado para a equipe de Lula e sua família, indo trabalhar com Vania – que ele já conhecia anteriormente. “Ah, o Sá era um amigão, né? O que a gente aprontava não tá escrito”, ela relembra com carinho. O fato de haver poucas mulheres em um segmento tão masculino nunca foi problema para ela, muito pelo contrário. Vinda de uma família de PMs – seu pai, seu tio e sua irmã eram da corporação – Vania sempre esteve acostumada com a farda e via o elemento feminino como um diferencial na equipe. Embora as mulheres façam o mesmo trabalho que os homens – incluindo os treinamentos de tiro e defesa pessoal – ela acredita que sua atuação pode ajudar a tornar a segurança menos “truculenta”, digamos. “A mulher tem essa delicadeza, vamos dizer assim, que não deixa o trabalho engessado”, defende.

Vania trabalhou de 2003 a 2008 na segurança presidencial e durante esse tempo viu de tudo. Um caso particularmente marcante foi o da tentativa de assalto a Fábio Luiz Lula da Silva, o Lulinha. O filho mais velho de Lula tinha uma empresa na Vila Madalena na época. Um carro abordou uma parte da equipe, que havia ido jantar e voltava para pegar o empresário. Houve o revide, mas nenhum dos seguranças foi alvejado (Lulinha ainda estava dentro do edifício). A curiosidade ficou por conta de um dos motoristas. Como era ainda a época da formação da equipe, o motorista nessa ocasião não era um militar, mas sim um civil contratado e que ficou apavorado na hora do tiroteio. Buscando se proteger, ele pulou um muro de uma casa que era baixa do lado da rua, mas alta para o lado de dentro. O rapaz caiu, rolou e, sem saber o que fazer, saiu correndo mancando. “Até hoje a gente tá procurando ele”, ri Vania.

Hoje na reserva, a sargento da PM relembra os tempos difíceis de escassez de profissionais na equipe de segurança de Lula, principalmente quando o presidente e sua filha Lurian vinham a São Paulo. Embora as equipes de Brasília e Florianópolis, respectivamente, os acompanhassem nas viagens, muitas vezes eram as equipes locais quem de fato faziam o trabalho na visita. E aí o cansaço dominava. “Isso sem contar a dupla jornada: como polícia – já que a gente tinha instrução de tiro, teste físico, etc mesmo na folga – e como mãe e mulher, em casa”. Do lado do Augusto, o cansaço também era grande, já que ele tinha de se deslocar todos os dias da zona norte de São Paulo até São Bernardo, um percurso de mais de 30km. Lembro do desânimo do meu padrasto nessa época, que só aumentou quando roubaram, de dentro da garagem da nossa casa, a moto que ele usava para trabalhar. Pouco tempo depois, Sá pediu para sair e, com a ajuda do parceiro Fontana, conseguiu retornar à segurança de FHC. Vania também deixou a equipe de Lula, voltando para a área de ensino da PM antes de se aposentar.

Relacionamento com autoridades, familiares e parceiros

Seres humanos são seres humanos. A pessoa pode ser presidente da República ou um simples soldado da polícia, mas ela tem sentimentos, vontades e necessidades próprias. Mais ainda: pessoas se relacionam com pessoas e quando essas vontades e necessidades sobressaem, pode haver faíscas. Pergunto a Fontana e Vania como era o relacionamento com as autoridades e ambos relatam que, apesar do profissionalismo, o caráter humano de ambos os lados transparecia sim. “Às vezes acontecia de a gente presenciar uma discussão no carro, por exemplo, entre marido e mulher. É natural, a pessoa se acostuma e nem lembra que você está ali”, lembra Fontana. Mas esse “esquecimento” nem sempre é algo tranquilo para os seguranças. “É, às vezes a pessoa ia em um jantar, por exemplo, previsto pra durar 1h e ela se esquecia da gente e ficava lá 3h, 4h. Enquanto isso, a gente fica lá fora esperando e passando fome. Pô e nós, quando a gente vai jantar? Eu costumava dizer: “tem coisas que nem em casa eu aturo e aqui eu não tenho escolha’”.

Mas nem tudo é sacrifício. Vania lembra de um caso positivo e particularmente marcante, envolvendo o falecido José Alencar. Embora morando em Brasília, o então vice-presidente passava por um tratamento no Hospital Sírio-Libanês e precisava ir a São Paulo com frequência, principalmente quando sua temperatura corporal se descontrolava. Em determinada ocasião, a saúde de Alencar piorou e as equipes se mobilizaram para um voo de emergência. Vania estava de serviço nesse dia, foi até o aeroporto recepcioná-lo e notou de imediato a aparência e o estado preocupante do vice-presidente. Ao descer do avião, ele brincou com a equipe: “Olha só, já viemos dar trabalho pra vocês, né?”. “Quer dizer, era alguém que sempre nos tratou com muito carinho, mesmo doente. Ele enxergava a gente como pessoa mesmo, não como o ‘escudo humano’ que é o segurança”. O vice-presidente José Alencar morreu em 2011, pela falência múltipla dos órgãos em decorrência de um câncer na região abdominal.

Fontana também fala com muito carinho de Fernando Henrique. “O presidente sempre foi muito educado, nunca levantou a voz, nunca questionou nossas orientações ou discutiu com a gente. Quando algum assessor reclamava com ele sobre as restrições da segurança, ele falava ‘ah, resolve lá com eles’”. Ao mencionar o ex-presidente, Fontana lembra muito mais dos pontos positivos e das várias histórias, principalmente aquelas vividas junto com o parceiro, de quem destaca o bom-humor. Sá e toda a equipe tinham o costume de imitar a voz de FHC, que sempre usou expressões e um tom de voz peculiar (aliás, muito imitado por Hubert no programa de TV “Casseta & Planeta”). E esse tom de voz transparecia ainda mais quando o ex-presidente atendia o telefone e falava quase cantando: “Aloooo?”. Logo, todo mundo na equipe brincava no telefone uns com outros imitando o chefe, dizendo: “Aloooo?”. Um belo dia, ao receber uma ligação de um número desconhecido, Sá achou que era Fontana ou alguém do escritório chamando, e atendeu com um “Aloooo?”, quando na verdade era…o próprio FHC! Sem jeito, Sá mudou o tom de voz rapidamente e atendeu o ex-presidente. “O Fernando Henrique sabe disso e sempre lidou com bom-humor”, conta Fontana.

Ao ser perguntado sobre o relacionamento com o parceiro, o segurança fica sem palavras pela primeira vez e lágrimas veem aos seus olhos. “Ah…o cara faz muita falta, né? A minha afinidade com o Sá era total. Às vezes a gente olhava a escala e quando via que ia dar plantão com fulano, pensava: ‘Putz, esse cara é chato…’. Com o Sá não, a gente até ficava feliz quando via que era com ele”, lembra. Vania se recorda do parceiro com carinho também. “Dentro do quartel, dentro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), você trabalha com qualquer pessoa, não tem escolha. Agora, ter amizade fora do âmbito do trabalho é outra coisa e o Sá era meu amigo, nós saímos para jantar todos juntos, sempre procurava ajudar quando podia. Além de ser um profissional maravilhoso, claro”, elogia. Meu padrasto faleceu em 2020, depois de mais de 30 anos de serviços prestados à corporação e à Presidência da República. Nem as corridas de longa distância (que ele adorava) e toda a atividade física a que ele sempre se dedicou o livrou de um câncer no pâncreas, que o levou em poucos meses. A PM de São Paulo organizou uma homenagem formal ao Sá, com a participação de Fernando Henrique Cardoso, de quem minha irmã recebeu a medalha de honra ao mérito.

O futuro e o fim

Embora esteja na reserva há muitos anos, Fontana até hoje trabalha com o ex-presidente, como supervisor na Fundação FHC. Ele conta que, com a pandemia e por conta de problemas de saúde, a atividade de Fernando Henrique diminuiu bastante, também, mas que ainda o vê como uma voz ativa na política e no partido o qual fundou, o PSDB. “O pessoal tá sempre procurando ele, Dória, Jereissati, todo mundo. Só que tem que entender que é um senhor de 90 anos, tem a questão da saúde, não é mais a mesma coisa”.

Aproveito o tema da política e menciono a exposição de alguns seguranças e militares que trabalham com Bolsonaro hoje, por exemplo, e que arriscam carreiras políticas buscando se associar ao presidente. Pergunto a Fontana se esse interesse político por parte da segurança é algo novo e ele discorda. “Não, isso sempre existiu, mesmo com o FHC. Teve uma época em que um dos seguranças, chamado Fabio Tenório, tentou algo assim, pedia conselhos do Fernando Henrique etc. O problema é que ele se filiou justo a um partido menor, do Collor, e só a família votou nele. Quer dizer, não é algo pensado, a pessoa faz só por fazer”, conta. Hoje Tenório é pastor na Zona Sul de São Paulo.

Questiono Fontana sobre o futuro e ele desconversa. “É que não tem mais nada do que havia antes, minha rotina é bem burocrática. Hoje eu ajudo o Fernando Henrique em questões mais básicas, é quase como um familiar mesmo. E sem o Sá, também não tem mais muita graça mesmo”, lamenta. Da minha parte, bate um misto de saudade do meu padrasto e um pouco de arrependimento mesmo, por não ter se interessado em ouvir dele próprio esses e tantos outros causos legais, de pessoas que passam a vida trabalhando para proteger outras pessoas. Fica a memória e a esperança de que, de onde estiver, ele possa ver os amigos e familiares que deixou e a história que construiu.