3 anos depois, ONGs denunciam óleo em praias atingidas no Nordeste

mão em primeiro plano segurando garrafa de plástica com resíduos de óleo e praia em segundo plano
praia em recife com óleo
Praia de Carneiros em 2019 com as manchas de óleo [Imagem: Recife Aerial Media (@rec_am)]

Segunda-feira, 02 de outubro de 2022. Como de costume, a confeiteira Mirelle Belinossi saiu para surfar em Porto de Galinhas (PE). No mar, notou as mãos sujas com uma tinta preta. Quando saiu da água, encontrou os pés também manchados. Foi então que reparou nas pelotas escuras que ocupavam boa parte da faixa de areia.  

Volta para quinta-feira, 24 de outubro de 2019. Ruan Fernandes tinha ouvido burburinhos sobre as tais manchas, mas nada tinha aparecido ainda em Itamaracá (PE). Estava na escola quando uma colega chegou dizendo que as tinha avistado na praia. Assim que a aula acabou, Ruan foi direto para o mar. Ele tinha 13 anos e não hesitou: se juntou aos outros moradores que já começavam a limpar o mar com os EPIs disponíveis.

O derramamento de óleo ocorrido nas praias do Nordeste em setembro de 2019 é considerado o maior desastre ambiental já ocorrido no litoral brasileiro. Ao todo, cerca de 3 mil km da costa foram afetados. Ao primeiro registro de óleo na praia, em 30 de agosto de 2019, seguiram-se novos episódios por pelo menos 6 meses, além de eventos pontuais até a metade de 2020. O petróleo cru, líquido negro e viscoso, atingiu 130 municípios, espalhados por todos os estados do Nordeste – Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe –, além de parte do Espírito Santo e do Rio de Janeiro. 

Mais de dois anos após o acidente, em dezembro de 2021, as investigações da Marinha do Brasil e da Polícia Federal concluíram que o responsável pelo vazamento era um navio grego de grande porte, o Bouboulina. Calcula-se que a indenização – ainda a ser paga – será de R$ 188 milhões, o equivalente aos gastos da limpeza pelas prefeituras municipais, estaduais e Governo Federal. 

Apenas nos três primeiros meses do desastre, em 2019, a quantidade de óleo recolhida já somava 4,7 mil toneladas – o equivalente a 34 mil barris de petróleo –, segundo a Marinha e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Muito, mas talvez não tudo: aventa-se a hipótese de que parte do petróleo tenha ficado preso em corais ou misturado à areia oceânica — e de que movimentações das águas oceânicas poderiam trazer a sujeira à tona. Em 2022, próximo da tragédia completar seu aniversário de três anos, as manchas voltaram a aparecer. Um enigma silencioso e silenciado: de onde vem o petróleo agora? 

Óleo de 2019 vs. 2022

Por enquanto, não há respostas definitivas. A maior probabilidade é que o óleo desse ano seja proveniente de um vazamento diferente do de 2019. Ele agora aparece em formato de bolotas, que carrega espécies de cracas (crustáceos) encontradas apenas em alto-mar. No fim de setembro de 2022, uma nota técnica do Governo Federal, assinada por um grupo de especialistas da Marinha e de universidades como UFPE e UFBA, apontou que as manchas que Michelle pisou fazem parte de “um evento sem ligação” com o avistado por Ruan. 

mão em primeiro plano segurando garrafa de plástica com resíduos de óleo e praia em segundo plano
Pesquisadores encontram rastros do óleo em objetos tirados do mar. [Imagem: PELD – TAMS]

Questão resolvida? Ainda não. O óleo do Bouboulina parece ter ressurgido — mas em outro ponto do litoral, nas praias próximas de Salvador (BA). “Tais amostras [na Bahia] demonstram a existência de resíduos daquele óleo, que permaneceu nas areias das praias, ou fixado em rochas e recifes de coral próximos ao litoral, que se desprenderam por força de ventos mais fortes e de ressacas, que normalmente ocorrem na região, nessa época do ano,” explica a nota técnica. 

Em palavras menos técnicas, a percepção da população foi semelhante. “O outro óleo era bem mais pastoso e aderente, se prendia facilmente em animais e corais, o que dificultava muito a retirada,” compara Ruan. “Esse outro veio como pedras que boiam e não causam tanto impacto.”

Analisando os biomarcadores do petróleo coletado em Pernambuco e na Bahia, a nota sugere ainda que o óleo de 2022 pode ter origem no Golfo do México. 

Fantasmas de 2019 

“O petróleo está para a praia como um grande incêndio está para a floresta: matando animais, colocando moradias em risco e se alastrando de forma muito rápida. As pessoas não têm dimensão disso.” 

“Em 2019, assim que o óleo chegou, nós começamos a divulgar. Eu sabia que era algo grave, mas grande parte da população achava que não era nada importante,” relembra Daniel Galvão, diretor voluntário do Movimento Salve Maracaípe, doutor em Oceanografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Ele relembra que antes da onda de óleo em setembro de 2019 — a mais intensa –, o grupo do Salve Maracaípe já alertava sobre a necessidade de barreiras de contenção na entrada dos estuários, para proteção dos manguezais. “Mas nada foi feito”, diz o oceanografista. “As pessoas precisam ver algo catastrófico para perceberem a gravidade.”

Com a chegada do óleo, mais pessoas se mobilizaram para fazer parte da limpeza. Também chegaram EPIs disponibilizados pelos governos municipais, estaduais e federal. Desde que o óleo ancorou na Ilha de Itamaracá, Ruan Fernandes, agora com 16 anos, estudante do 2º ano do Ensino Médio e idealizador do projeto Itamaracá Preservada, conta que tinha medo do material se prender nos corais e prejudicar pescadores e marisqueiras. 

Essa preocupação não foi infundada. A presença do óleo prejudicou a fonte de renda desses trabalhadores. O receio de consumir frutos do mar contaminados reduziu a venda dos produtos mais desejados das praias e, consequentemente, criou um conflito que abrange todo o setor turístico litorâneo. Afinal, a divulgação do desastre implica na desaceleração da economia na região. Em outubro de 2019, uma nota da Fiocruz  alertava a população a não fazer o uso recreativo das praias afetadas e nem consumir pescados e mariscos das praias e regiões próximas atingidas pelos resíduos de óleo.

Ressaca marítima em 2022

Atualmente, a quantidade de bolotas de óleo atinge a casa das 7 toneladas no litoral pernambucano –  uma fração de 0,14% do total derramando em 2019. Mas o fantasma de três anos atrás ainda assombra aqueles que tentam alertar para o desastre. 

Ruan foi um dos primeiros a dar visibilidade para o retorno do óleo em Itamaracá, agora em 2022. Logo em seguida, o garoto foi convocado por um órgão de fiscalização ambiental – que ele preferiu não nomear por receio de represálias. Ele acreditava que seria elogiado pela atenção ao desastre, mas a convocação acabou tomando um outro rumo. “Me disseram que minha ação afastaria turistas da ilha. Justificaram que se a economia não gira, não dá para abrir mais hospitais”, afirma.

Com o Salve Maracaípe, Daniel denuncia ter vivido uma situação parecida. “Fomos alvo de muitas ameaças por conta da divulgação da chegada do óleo.” Ele explica que entende o dilema por parte de pescadores e marisqueiras, trabalhadores mais simples que têm a vida e o bolso diretamente afetados pela situação. Por outro lado, as ameaças parecem vir de uma parte mais elevada da pirâmide econômica turística. “São pousadas, empresas de bugres e através de redes sociais”, disse uma fonte que preferiu não se identificar. 

Quando questionado sobre as dificuldades de divulgação do problema, Ruan aponta um motivo similar: “Os grandes grupos de turismo não vão se pronunciar, porque isso daria mais visibilidade e acarretaria no afastamento dos turistas que querem desfrutar a praia.”

Próximas ondas

Apesar de ser mais fácil de limpar, o óleo em bolotas não encerra a preocupação dos ativistas. Daniel conta que desde 2019, alertava sobre o perigo na entrada de estuários que levam aos manguezais . “Quando entra no mangue, é quase impossível limpar.” 

Ruan também ressalta os prejuízos sofridos pela fauna e flora, pelas tartarugas e os peixes contaminados, além da degradação dos recifes de corais, que naturalmente protegem a beira da praia do mar aberto. Ele já sabe que quer seguir a área de biologia marinha quando chegar à faculdade. 

Independentemente da origem das novas aparições de óleo, três anos depois a violência sofrida no litoral nordestino ainda parece negligenciada. “Hoje, se a gente tivesse um novo grande derramamento, não teríamos medidas emergenciais, como boias de contenção, seguimos sem uma resposta concreta,” finaliza Daniel.