Racismo no futebol: em 20 anos de pontos corridos, nenhum dirigente negro na série A

por Beatriz Carneiro e Catarina Virginia

Levantamento exclusivo com 44 clubes mapeou 151 dirigentes – todos brancos. Exceções como Tiãozinho, da Ponte Preta, chegaram à série B

“A minha chegada à presidência da Ponte Preta teve um sentido simbólico, de quebrar uma barreira no clube”, diz Sebastião Arcanjo, conhecido como Tiãozinho, ex-presidente do clube. Não foi uma conquista qualquer: em 2019, ele se tornou o primeiro presidente negro da agremiação. Um ano antes, bem perto do Moisés Lucareli – mais precisamente, a 800 metros dali –, um outro negro ascendia ao posto máximo de um clube: Palmeiron Mendes Filho, que em 2018 chegava ao topo no Guarani.

A vitória, porém, foi parcial.  Em 2018 e 2019, tanto Ponte quanto Guarani estavam na Série B. Manteve-se intocado um incômodo tabu. Em 20 anos de disputa por pontos corridos, nenhum clube da série A do Campeonato Brasileiro teve um presidente negro. Os dados, disponíveis nos sites oficiais e também disponibilizado pelas assessorias dos clubes, são do levantamento exclusivo da reportagem da Babel. Analisamos o histórico dos 44 clubes que disputaram a Série A do Brasileirão entre 2003 a 2022. Ao todo, 151 pessoas presidiram os clubes da elite do futebol brasileiro, e nenhuma delas era negra. 

“Os chamados ‘clubes grandes’ foram fundados nas elites”, analisa Sebastião. “Apesar de o país de já ter uma população negra bastante expressiva, no início os negros eram proibidos de estar nos campos de futebol”. Na visão do ex-dirigente, nos espaços de poder, essa distância é ainda maior. “[Para os negros] É como se fosse uma maratona de 42 quilômetros com obstáculos”, compara Sebastião.

Quando começou a acompanhar a Ponte, Tiãozinho não tinha condições de comprar os ingressos para os jogos. Era mais um no meio de outros torcedores que acompanhavam as partidas da ferrovia que passava atrás do Estádio Moisés Lucarelli. Na época, ele esperava os portões abrirem no segundo tempo para ter chance de entrar no estádio. 

“Juntava meus trocados e ia para o campo de futebol como torcedor de arquibancada. Foi assim que tudo começou”, diz ele. Sem os recursos financeiros da maioria histórica de dirigentes, Tiãozinho atribui sua ascensão à diretoria da Ponte à luta antirracista e aos posicionamentos políticos que defendia fora das quatro linhas. 

Antes de tornar-se dirigente do clube, Sebastião começou sua caminhada como militante do movimento negro em Campinas, fato que o fez ganhar notoriedade na cidade e ser eleito vereador, e depois deputado estadual, pelo PT. Durante o mandato de vereador, Tiãozinho propôs a “semana pontepretana” na cidade. A ideia chamou a atenção dos mandatários da equipe, que o convidaram para compor o conselho e diretoria da Ponte: “Daquele menino pobre da arquibancada, da linha do trem, me tornei referência”.

Sebastião faz questão de enfatizar que não enxerga a própria história do ponto de vista meritocrático. Ele lembra que, como um clube fundado por operários, a Ponte contraria os princípios elitistas do futebol – característica que Tiãozinho levou consigo para a direção do clube. Fosse na construção da diretoria que o acompanhou em seu mandato ou para enfrentar os momentos de preconceito que sofreu, Tiãozinho garante que a luta por espaço só acontece quando entendida de maneira coletiva.

“O movimento negro me ensinou a sair das dificuldades. Aquele manual da sobrevivência que a gente aprende na periferia, de como lidar com situações de desconforto, de constrangimento, sem se abater. É preciso manter sempre a cabeça erguida, saber que essa posição foi uma posição que nós conquistamos, nós lutamos para tê-la”. 

Mantém-se o tabu e o pacto da branquitude

A falta de representantes no alto escalão do futebol mostrou-se um aspecto limitante, inclusive, para as discussões sobre o racismo dentro e fora dos clubes e entidades. No último mês de agosto, durante o seminário da CBF para divulgação do Relatório Anual de Discriminação Racial de 2021 — que mostrou um aumento de 106% dos casos de racismo nos estádios em relação a 2020 — o presidente da entidade, Ednaldo Rodrigues, sugeriu a perda de pontos por casos de racismo, a partir de 2023, medida que não foi bem vista pelos dirigentes das equipes.

Para Marcel Diego Tonini, pesquisador no Centro de Referência do Futebol Brasileiro do Museu do Futebol, essa negativa se deve ao silencioso pacto da branquitude, conceito criado pela psicóloga Cida Bento. “Existe um pacto muitas vezes tácito entre pessoas brancas para não tratar o assunto e sempre desqualificar o racismo. O fato dessas pessoas se manterem há mais de cem anos no poder do futebol, em cargos que realmente movimentam tanto o poder político quanto o poder e financeiro do futebol econômico, já é bastante revelador”, explica ele. 

Contudo, se o pacto persiste nas diretorias, fora dos clubes o debate sobre o racismo no esporte vem crescendo ao longo dos anos, graças ao aumento da representação negra nas redações esportivas. O jornalista negro Patrick Mesquista, editor assistente do UOL Esporte, já percebe mudanças nos perfis das redações, mas ressalta que a falta de oportunidade impediu que isso acontecesse antes.

“O racismo te proíbe de sonhar. Não te é permitido sonhar com posições altas, você não é treinado para isso. Você é treinado para sobreviver, o que inclui servir e não comandar. Você não vai ter como estudar lá fora e voltar com a capacitação monstruosa que vai te permitir desbancar um desses caras aí”, opina Patrick.

O obstáculo financeiro na corrida 

Para Thales Ramos, editor do Sportv e organizador do podcast Ubuntu Esporte Clube, o fator financeiro segue sendo uma das maiores limitações para pessoas negras. 

“Se aquilo ali dá dinheiro, se custa dinheiro ou tem uma remuneração interessante, então vai ficar longe das pessoas pretas. Não faz sentido para o sistema racista colocar pessoas pretas perto do dinheiro. Não faz sentido para o sistema racista botar pessoas pretas em cargos de poder porque elas conseguiriam perceber também esse racismo”, defende o jornalista.

Assim como Thales, Tiãozinho acredita que o dinheiro continua a falar mais alto e torna cada vez mais incerto o futuro dos poucos negros que se arriscam no alto escalão do futebol brasileiro. Tiãozinho enxerga a popularização dos clubes empresas, as chamadas SAFs (Sociedade Anônima de Futebol) como um novo – e grande obstáculo – nessa corrida.

“Se nós já tínhamos poucos dirigentes negros na estrutura atual, de clube associativo – onde você disputa poder e espaço ali dentro do clube -, quando você transforma todos os clubes em clubes empresas a tendência é que quem vai tomar conta desses clubes vai ser gente mais endinheirada. Você vai ter alguém que não conhece quem é o dono, o que que ele faz, é só um fundo de investimento”.