Volta da cintura baixa: uma tendência de moda pode ameaçar corpos diversos?

A volta da calça cintura baixa

Por Gabrielle Abreu e Kaynã de Oliveira

Ela voltou! A mais polêmica dos entusiastas da moda: a cintura baixa. Odiada por alguns e amada por outros, a tendência está entre nós, seja nas passarelas ou nas lojas de departamento. Microssaia, calça, shorts, micro top… tudo que deixe o umbigo aparente e valorize a silhueta magra. E é neste momento que a moda se encontra em um embate: de um lado, a volta a uma estética de exaltação da magreza com roupas que valorizam um único biotipo. Do outro, os novos discursos popularizados na internet em prol da diversidade de corpos, como o movimento body positive

Na história da moda, é comum recuperar tendências: passamos pelos anos 1950 com os croppeds, pelos 1970 com as calças wide leg, e pelos 1980 e 1990 com a calça mom. Agora, é a vez dos anos 2000 retornarem ao universo fashion. Referências ao estilo Y2K (abreviação do inglês ‘year 2000’, ou ano 2000, em português) tem marcado presença em desfiles de moda recentes, como o Milão Fashion Week 2022 — e fora deles também, ao ser usado por modelos e influenciadoras como Gigi Hadid e Kim Kardashian. 

Modelo em desfile do Milão Fashion Week 2022 com peça da marca Diesel (esquerda) e a atriz brasileira Bruna Marquezine (direita), ambas com calça de cintura baixa, peça símbolo da estética ‘y2k’. — Fotos: Reprodução/Instagram

A calça Saint Tropez, a popular “cintura baixa”, idealizada pelo estilista Alexander McQueen em 1995, acompanhou um importante processo de ruptura no padrão estético que permaneceu inalterável por mais de 200 anos, como explica Denise Bernuzzi de Sant’Anna, professora de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora do livro Gordo, magros e obesos – A história do peso no Brasil, de 2016. 

“[A calça Saint Tropez] foi imaginada para aquilo que, nos anos 70, se chamava de ‘mulher felina’, em contraposição à ‘mulher flor’, que é a mulher com corpo de violão, que o homem pega pela cintura como uma florzinha, põe no vaso, planta e cultiva”, afirma a especialista. Para ela, essa mulher que dominava o imaginário romântico masculino desde o século 19 vai sofrer a concorrência da mulher felina, mais longilínea, que tem sexy appeal. “Não tem só glamour, ela é sexy, ela é mais jovem, ela é Lolita.”

Para Denise, a volta da estética anos 2000 resgata também esse ideal de corpo, porém não a versão “Lolita” de Vladimir Nabokov, mas a versão “Lara Croft”, personagem de videogame interpretada no cinema pela atriz Angelina Jolie em 2001. “Quando a Lara Croft de Angelina Jolie aparece, ela tem uma coisa que as mulheres dos anos 60 não tinham em hipótese alguma, que é representar a mulher que vai à luta, a mulher que trabalha, que vai para guerra”, diz a especialista.

A atriz norte-americana Angelina Jolie no filme “Lara Croft: Tomb Raider”, inspirado no videogame de mesmo nome (esquerda) e na premiére do filme em 2001 (direita). — Fotos: Reprodução/Divulgação

Embora com contrapontos, ambos os ideais de corpos estudados pela pesquisadora nos anos 2000 dividem o manequim 38 — medida que, geralmente, é requisitada para modelos de passarelas. Sendo o corpo magro ainda o ideal de beleza, o que muda com a volta da tendência no ano de 2022? 

Os discursos para corpos livres

“O corpo magro sempre foi o corpo que as pessoas queriam atingir. O que acontece hoje é que temos acesso a novos discursos”, afirma a pesquisadora Bruna Salles, docente do Senac Lapa Faustolo do curso de Moda, da área de Cultura e Comportamento de Moda, e doutoranda em História pela PUC-SP, onde estuda a história do corpo gordo no Brasil.

Esses novos discursos são frutos do ativismo pela valorização do corpo, como o movimento Body Positive da década de 60 e o Plus Size na década de 70, ambos originados nos Estados Unidos e que ganharam maior visibilidade no Brasil pelas redes sociais. O Plus Size, por exemplo, deixou de ser apenas um movimento para virar um nicho de mercado. 

Só em 2020, o mercado plus size cresceu 10% no país, apesar da pandemia de covid-19, movimentando aproximadamente R$5 bilhões por ano, segundo dados do relatório da Associação Brasil Plus Size (ABPS). Aliás, a maior feira Plus Size do mundo está em São Paulo, a Pop Plus. Bruna compartilha que essa não é uma surpresa, visto que esse é um mercado com demanda reprimida: faltam às pessoas gordas desde anel à gargantilha. 

Letticia Munniz, modelo, no Baile Vogue 2022. — Foto: Reprodução/@fbvasconcellos

Essa reação do mercado caminha lado a lado com os movimentos de valorização do corpo. Em outras palavras, estar bem consigo mesma é um valor de mercado, como explica a professora Denise: A ideia da saúde estar presente na aparência física das mulheres vale mais hoje do que no passado. E a grande maioria das roupas e dos acessórios tem que expressar isso: o fato de você estar empoderada”.

Para o mundo da moda, criar padrões de beleza inalcançáveis, como o da cintura baixa, é uma forma de alimentar o próprio setor. “Você adoece os consumidores, porque quando você quer consumir a moda, você quer se encaixar no que ela oferece para você”, afirma Lola Ciccari, pesquisadora e comunicadora de moda responsável e apresentadora do podcast “Por Baixo dos Panos”, em que revela todas as problemáticas por trás da indústria fashion.

Bella Hadid, modelo, em desfile da marca Courreges. — Foto: Reprodução/Instagram

Há exemplos concretos. A modelo e influenciadora plus size Letticia Muniz nos contou que, a luta para tentar se encaixar nos padrões de beleza a fez desenvolver transtornos alimentares desde muito cedo. Dos 10 anos à idade adulta, ela lutou contra a anorexia, a bulimia e chegou a tomar diferentes tipos de remédios tarja preta para emagrecer, sempre oscilando entre episódios de compulsão alimentar. “Teve um dia em que eu comi 5 quilos de bombom de uma vez só e passei muito mal. É sempre essa alternância entre não comer e comer desesperadamente”.

Foi no movimento Body Positive que Letticia encontrou sua libertação. E hoje, ao se autovalorizar, a influenciadora afirma que se cuida muito mais que antes, que come melhor e se exercita, porque valorizar o corpo que se tem não significa deixar os cuidados de lado, mas sim, se olhar com amor e se acolher.

“Eu sou grande. Tenho bunda, peito e braço. Esse é o meu corpo saudável. Quando eu decidi me libertar, foi nesse momento que veio o body positive, o amor próprio que, ao contrário do que muita gente acha, não significa falar ‘dane-se’ e ser uma mulher relaxada com seu corpo, muito pelo contrário! É um momento em que você não vive mais para atender expectativas alheias”, afirma a modelo.

Segundo a pesquisadora Lola, o mundo dos desfiles e o dos editoriais de moda são universos paralelos: nas passarelas, o padrão sempre foi e continua sendo de mulheres altas e magras. Já nos editoriais, grandes marcas como Calvin Klein tem apostado na diversidade estética, colocando diferentes biotipos em seus outdoors e publicações.

Propaganda Calvin Klein. — Foto: Reprodução/Divulgação

Mas todo movimento tem uma contracorrente. De um lado, o movimento de valorização do próprio corpo e, do outro, a ascensão da moda “Y2k” e a barriga “chapada” como acessório do outfit. Nas palavras de Lola: “Esse contramovimento traz a exaltação dessa magreza que a gente olha e vê que não parece natural, parece uma magreza construída. E isso tem um impacto muito grande na forma como a sociedade vai se ver agora”.

Letticia vai além e defende que o retorno da moda 2000 representa um novo processo de exclusão dos corpos gordos. É como se fosse um hype: em dado momento, estava em alta ter corpos diversos na moda. “Agora não é mais legal. E não é sobre ser legal. É sobre a gente ter o direito de fazer parte disso. É sobre eu ter o direito de poder me vestir como eu quiser”, diz a modelo.