O futebol explica o Brasil (da Covid-19)

Aos 19 minutos do primeiro tempo de um jogo na noite de 16 de março de 2021, válido pela primeira fase da Copa do Brasil, o goleiro Marcão, um dos atletas mais experientes do elenco do Club Sportivo Sergipe, fez grande defesa em um chute do volante Auremir, do Cuiabá, e evitou que a equipe mato-grossense abrisse o placar no acanhado (e vazio) estádio Etelvino Mendonça, em Itabaiana (SE).

No minuto seguinte, após a cobrança do escanteio que cedeu ao praticar aquela defesa, Marcão foi novamente exigido, agora em finalização de Walber. Voltou a corresponder, e assim o fez em pelo menos mais duas ocasiões de perigo criadas pelo Cuiabá ao longo daquela partida, que terminou empatada em 0 a 0 muito em função da grande atuação do arqueiro. Mas o resultado, conforme o regulamento do torneio, acabou eliminando o modesto Sergipe, uma vez que o Cuiabá, clube recém-promovido à primeira divisão do futebol brasileiro, possuía a vantagem do empate por jogar fora de casa.

Nada disso, é claro, seria suficiente para ganhar manchetes nacionais nas editorias de Esporte – afinal, tratava-se apenas de mais uma boa atuação de um jogador experiente de um time pequeno, algo que ocorre com alguma frequência. Ou de um empate sem gols entre duas equipes de menor expressão no cenário nacional, em uma competição longa que acabara de começar.

Mas Marcão, o goleiro, conseguiu chegar aos holofotes de outra forma: com as palavras. Naquela noite, seu principal momento ocorreu após a partida, quando, como destaque da peleja, se viu entrevistado pela transmissão do canal à cabo SporTV. Em um depoimento sisudo, o goleiro de 33 anos se tornou mais um personagem do futebol – e talvez um dos mais emblemáticos até aqui – a trazer ao debate nacional a suposta dicotomia entre economia e saúde durante a pandemia de Covid-19; entre o retorno ao trabalho e as orientações de isolamento social em meio à maior crise sanitária enfrentada pelo mundo em um século.

Para o goleiro, a paralisação do futebol não deveria ocorrer. Ele argumentou, após ser questionado pelo repórter Guilherme Fraga sobre o assunto, que os times de menor expressão do futebol brasileiro – como o Sergipe – têm enfrentado dificuldades financeiras por causa da pandemia e que, consequentemente, o problema também se espalhava para os grupos de atletas. “A gente mata um leão por dia”, lamentou.

Quando Fraga o contou dos elogios feitos pela equipe de transmissão do canal do Grupo Globo à sua atuação na partida, Marcão não esboçou reação de felicidade. Manteve um semblante sério, um rosto fechado, coberto por uma barba longa, que expressava descontentamento com o resultado negativo. “Eu trocaria todas as minhas defesas por um 1 a 0. Esse dinheiro iria cair muito bem para nós aqui”, prosseguiu o goleiro, referindo-se à premiação de 560 mil reais que a equipe receberia caso avançasse de fase na competição. O montante seria suficiente para cobrir quase quatro meses da folha salarial do Sergipe – que, segundo o jornalista Cosme Rímoli, gira em torno de 150 mil reais por mês.

“Tem muito jogador de time pequeno que precisa muito disso aqui. E não só jogador não, tem muita gente envolvida no futebol, que são os funcionários do clube, roupeiros, massagistas, que ganham pouco e precisam disso”, desabafou Marcão, contando que alguns atletas passaram fome em 2020, quando o futebol chegou a ser totalmente paralisado em função da crise sanitária, mesmo antes que esta atingisse seu ápice. “Ano passado a gente passou por uma situação de quatro meses sem receber salário. Quem está em time grande ganha 100 mil, 150 mil reais e consegue manter isso tranquilo, mas e nós? Nós que ganhamos aqui pouco mais que um salário mínimo sofremos muito, mesmo.”

As declarações de Marcão contra a paralisação do futebol ocorreram a despeito da situação difícil vivida pelo próprio Sergipe naquele momento. No dia anterior ao confronto contra o Cuiabá, nove atletas e o técnico Paulo Foiani testaram positivo para o coronavírus e foram barrados do duelo. Um mês antes, o Sergipe já havia passado por um primeiro surto de Covid-19, quando dez profissionais foram infectados. Naquela noite, o time atuou com apenas seis jogadores no banco de reservas – três deles eram goleiros.

O dia 16 de março, uma terça-feira, também marcava um novo recorde diário de óbitos pela doença no Brasil, com o registro de 2.841 mortes, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Era a aceleração da segunda onda da pandemia no país, que atingiria um pico de 4.249 vítimas fatais em um só dia em 8 de abril, menos de um mês depois.

Em boletim extraordinário publicado naquela terça-feira, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicava que 24 Estados e o Distrito Federal, entre as 27 unidades federativas do país, contavam com taxas de ocupação de unidades de terapia intensiva (UTIs) para Covid-19 em patamares iguais ou superiores a 80%, sendo 15 deles com taxas iguais ou superiores a 90%. A situação era “extremamente crítica” ou de “colapso”, segundo a fundação. Sergipe era um dos Estados que passavam por isso, com 89% dos leitos ocupados. Mas Marcão queria jogar – ou, melhor dizendo, entendia que precisava jogar para manter seu sustento.

A voz díspar do treinador

Dias antes, em 4 de março, o então técnico do América-MG, Lisca, havia solicitado – também em entrevista ao SporTV, na transmissão de um dos jogos da equipe – a paralisação da Copa do Brasil. Em um desabafo emocionado e intenso antes da partida do Coelho contra o Athletic, em Juiz de Fora (MG), pelo Campeonato Mineiro, Lisca, carinhosamente apelidado de “Doido” pelo meio futebolístico, contou que estava perdendo amigos, inclusive treinadores de futebol, para a doença. O depoimento ocorreu um dia após a morte do técnico Ruy Scarpino, campeão paulista em 2002 pelo Ituano; em dezembro de 2020, o treinador Marcelo Veiga, ex-Bragantino, também fora vitimado pela doença.

“Vou fazer um apelo para as autoridades do Brasil e principalmente para a CBF. É quase inacreditável que saiu uma tabela da Copa do Brasil hoje com jogos nos dias 10 e 17, com 80 clubes, que nós vamos levar delegação de 30 pessoas para um lado e para outro do país. Nosso país parou, gente. Não tem lugar nos hospitais”, desabafou Lisca à beira do gramado. Envergando um colete amarelo do América-MG, ele olhava diretamente para a câmera e apelava ao comando da Confederação Brasileira de Futebol (CBF): “pelo amor de Deus.”

A fala de Marcão, quase duas semanas depois do apelo de Lisca, comprova que o pedido do treinador, no fim das contas, não foi atendido: o futebol continuou. Mais do que isso, o depoimento do atleta do Sergipe soou como uma resposta ao técnico, cujas declarações repercutiram por dias a fio na mídia especializada.

O goleiro fez questão, por exemplo, de mencionar os altos salários praticados nas primeiras divisões do Campeonato Brasileiro, comparando-os à renda menor de quem atua em divisões inferiores. O América-MG acabara de garantir sua vaga na Série A de 2021, após ficar com o vice-campeonato da segunda divisão de 2020, temporada na qual também alcançou a semifinal da Copa do Brasil.

Em uma espécie de “leva e traz” por meio da imprensa, Lisca voltou a ser conclamado a se manifestar sobre o tema cinco dias depois da fala de Marcão, em uma entrevista coletiva na sequência da vitória por 1 a 0 do América-MG sobre o Cruzeiro, em partida válida pelo Campeonato Mineiro. Mais uma vez, se posicionou de forma contrária à realização do futebol – agora, com mais alguns argumentos e menos emoção, com mais propostas e em menor tom de desabafo, o técnico reconheceu ter ouvido diversos especialistas tratando a situação do Brasil como uma “bomba”, e nisso baseou sua arguição.

“O grande problema não é só a transmissão do vírus, é o colapso dos hospitais. Não pode ter uma pessoa com doença crônica, uma apendicite, uma pedra no rim, porque não tem leito”, contou Lisca. 

No vaivém de trocas de declarações entre Marcão e Lisca, a semelhança que ambos carregam, de serem personagens que participam ativamente do futebol brasileiro, parecia ofuscada pelas diferenças – não apenas sociais e de opiniões a respeito da pandemia, que escancararam ainda mais a profunda divisão da sociedade entre “saúde e economia”, mas também entre os times grandes e pequenos, e suas distintas percepções de um mundo pandêmico.

Um deles, de uma equipe pequena, queria seguir jogando para garantir ao menos um salário mínimo, apesar dos riscos; outro, no time grande, preferia interromper a intensa movimentação do futebol em um país em colapso sanitário.

Três Estados, 16 positivados

“Eu vi vários infectologistas falando que isso é uma bomba. Vi o time da Ponte Preta com 22 casos, o Marília com oito, dez… Eu avisei há duas semanas que ia ser difícil”, disse Lisca em sua coletiva de 21 de março, citando dois exemplos de equipes que viveram surtos de Covid-19 em seus elencos em meio à disputa da Copa do Brasil.

O caso do Marília foi especialmente emblemático. O time, que atua na Série A3 (ou a terceira divisão) do Campeonato Paulista, foi obrigado a viajar de ônibus por três Estados em um intervalo de 48 horas para disputar seu confronto contra o Criciúma (SC) pela Copa do Brasil, em 18 de março.

O jogo estava inicialmente marcado para Marília, interior de São Paulo, distante 443 quilômetros da capital paulista, mas não pôde ocorrer na cidade devido às restrições sanitárias impostas pelo governo local. Foi, então, transferido para Varginha, no Sul de Minas Gerais, a 564 quilômetros da localidade original. Mas o município mineiro também não permitiu sua realização.

A saída encontrada pela organização do torneio foi marcar o confronto para Cariacica, no Espírito Santo. A cidade capixaba está localizada a 778 quilômetros de Varginha. Fica, ainda, a 1.378 quilômetros de Marília.

Depois dos quase 2 mil quilômetros percorridos em dois dias, o Marília enfim acabou por empatar em 0 a 0 com o Criciúma – jogando, de fato, no suntuoso e cariaciquense estádio Kléber Andrade, cujas vazias arquibancadas multicoloridas, construídas em formato de tobogã, não foram capazes de chamar tanta atenção quanto o roteiro da equipe paulista. A igualdade classificou o Criciúma. 

Além da eliminação e das extensas milhas de viagem, o Marília ainda acumulou mais um saldo na via-sacra pelos três Estados do Sudeste: 16 casos positivos de Covid-19 entre jogadores e membros da delegação. O time reclamou publicamente da falta de organização que o fez levar para o Espírito Santo uma partida que deveria ter acontecido em seu próprio estádio, colocando seu elenco em risco maior de contaminação pelo coronavírus. Mas não deixou de entrar em campo – já que, como Marcão, precisava jogar, especialmente porque a Série A3 paulista estava paralisada pelas restrições sanitárias locais e, com isso, o clube ficaria temporariamente sem calendário de competições, não fosse a Copa do Brasil. 

Interrupções

A interrupção da Série A3 paulista foi anunciada justamente em 16 de março e durou até 27 de abril, período da chamada “fase emergencial” de contenção da Covid-19 no Estado. A Federação Paulista de Futebol (FPF) foi contrária à paralisação dos jogos de todas as suas divisões locais, afirmando que os protocolos constituíam uma “bolha” de segurança para o setor esportivo e que a ausência de público era uma das garantias. “Com a paralisação, mais de 3 mil atletas, membros de comissões técnicas e funcionários das agremiações param de ter esse controle médico”, argumentou a entidade em nota.

Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) divulgado ainda em março mostrou, porém, que os testes de RT-PCR conduzidos em jogadores de futebol no Estado ao longo de 2020 tiveram índice de positividade de 11,7%, tão alto quanto o de profissionais da saúde da linha de frente do combate. A pesquisa avaliou mais de 30 mil testes de 4.269 atletas, além de 2.231 testes de integrantes das delegações.

O levantamento foi realizado entre equipes que disputaram a Taça Paulista, o Paulista Sub-23, o Paulista Sub-20 e três divisões profissionais do Campeonato Paulista, além dos campeonatos Paulista e Sub-17 de futebol feminino. Isso significa que a maior parte do estudo englobou times de pequeno porte, já que até mesmo na elite estadual havia equipes que sequer se classificaram para a Série D nacional – caso do Água Santa, por exemplo.

“É uma taxa de ataque bem superior à observada em outros países”, destacou o coordenador da pesquisa, Bruno Gualano, à Agência Fapesp, citando ligas de países como Alemanha e Catar. “Comparados aos outros casos de que se tem registro, nossos jogadores se infectaram entre três e 24 vezes mais.”

Times pequenos são imensa maioria

Segundo um raio-x elaborado pela CBF em 2019, o Brasil possui 742 equipes profissionais, além de cerca de 22 mil atletas sob contratos profissionais. Apenas 40 times disputam a primeira e segunda divisões, as mais abastadas do esporte no país – 20 em cada, incluindo o América-MG, ex-equipe de Lisca.

Outros 88 clubes se dividem entre as séries C e D, nas quais as disparidades financeiras ante os times de primeiro escalão começam a se acentuar. O Sergipe, de Marcão, pode ser considerado até mesmo um clube privilegiado: mesmo com uma folha salarial modesta, é uma das 68 equipes que têm vaga na quarta divisão brasileiro.

Considerando que 128 times atuam nas quatro divisões do futebol nacional, o levantamento da CBF deixa claro que mais de 600 clubes precisam sobreviver praticamente apenas com disputas regionais, que tendem a contar com calendários mais limitados – é o caso, por exemplo, do Marília. De acordo com pesquisa publicada em abril de 2019 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), 90% das equipes brasileiras jogam em média somente 19 partidas por ano, enquanto apenas 14% delas têm um calendário completo para o ano todo, disputando uma das quatro principais divisões do futebol brasileiro. 

Levando em conta que o elenco de um time de futebol possui em média 30 atletas, isso significaria que cerca de 18 mil jogadores do Brasil não disputam sequer a Série D nacional – aquela na qual Marcão, um exemplo das dificuldades no meio diante da pandemia, atua. Mais do que esportivo, forma-se assim o retrato de mais um grande problema social para um país em crise.

Auxílio distante

Apenas dois dias depois do desabafo do goleiro do Sergipe, em momento em que a segunda onda da pandemia já tomava conta do país, o presidente Jair Bolsonaro assinou duas Medidas Provisórias para que o auxílio emergencial voltasse a ser pago. Ainda assim, em valor menor do que o realizado no ano anterior – as novas parcelas passaram a variar de 150 reais a 375 reais, ante ao menos 600 reais na ajuda concedida em 2020 – e sem mirar especificamente em jogadores de futebol e adjacentes.

Nesse sentido, a proposta do técnico Lisca para que o futebol pudesse ser paralisado com a devida atenção social aos membros do esporte, especialmente de equipes menores, passou a ser o pagamento de um auxílio emergencial próprio para o segmento.

Uma medida do gênero chegou a avançar no Congresso em 2020, com apoio da senadora e ex-atleta de voleibol Leila Barros (PSB-DF), prevendo pagamentos de 600 reais aos profissionais do setor esportivo. Acabou, porém, vetada pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro daquele ano, em momento em que a epidemia aparentava dar sinais de redução e controle no Brasil.

O tema voltou à tona no início de 2021, com o recrudescimento da pandemia, por meio da sugestão de Lisca – que, desta vez, propunha um trabalho direto da CBF pelo auxílio, à parte do Congresso Nacional.

“A CBF tem o controle de todos os contratos, valores, está tudo lá. Não podemos deixar nenhum profissional desatendido. É hora da gente, que está numa melhor condição, se sacrificar e poder ajudar todo mundo. Está caindo de maduro para a gente, do futebol, fazer isso”, comentou o então treinador do América-MG em entrevista coletiva.

Novamente a proposta não foi adiante, colocando os jogadores de times de menor expressão, como Marcão, entre a cruz e a espada: jogar para garantir o sustento ou se resguardar para assegurar a saúde.

A confederação brasileira, de fato, possuía os meios indicados por Lisca. Tudo está no chamado “Relatório de Gestão 2020”, disponibilizado pela diretoria da entidade em seu website. São mais de 200 páginas de incontáveis informações, que vão desde dados internos da confederação até relatos do saldo de transferências de jogadores na temporada. A parcela derradeira do documento, a partir da página 262, traz uma seção batizada de “Área Financeira, o maior desafio”.

Nela, é descrito que, ao final do ano passado, o patrimônio da CBF totalizava 1,56 bilhão de reais. A receita operacional da entidade em 2020, por sua vez, superou a casa dos 661 milhões de reais. E há, sim, relatos de aportes destinados ao combate à pandemia: foram, no total, 168 milhões de reais – não houve envios diretos a jogadores, mas alguns clubes de menor expressão receberam doações, segundo a confederação.

Além da CBF, responsável pela maior parte dos aportes, o montante também contou com recursos provenientes da Fifa, entidade máxima do futebol mundial, e da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).

Ao longo de 2020, foram 74,6 milhões de reais enviados para clubes da Série A em linhas de crédito. Pelo mesmo mecanismo, as equipes da Série B receberam 25,3 milhões de reais. Já os times das séries C e D receberam, juntos, 15,8 milhões de reais, no que a CBF classificou como “doações para clubes que compõem a base do futebol brasileiro”.

Não há menção, porém, aos outros 600 times que não disputaram nenhuma das quatro divisões nacionais no período – o Sergipe de Marcão, por exemplo, ainda não fazia parte do grupo de 128 times das séries A a D no ano passado; e foram, segundo o goleiro, quatro meses sem salários na equipe no período. O Marília, breve inquilino de Cariacica, também não figurava na lista.

Assim, membros de equipes deste escalão passam fome, como revelou o goleiro. Enquanto isso, a Covid-19 passa perto e o auxílio passa longe.

É diante desse cenário que eles buscam seguir – cada qual a seu modo, com sua necessidade e com sua opinião. É assim que as centenas de “invisíveis” envolvidos nessa confusão, passando pela maior crise sanitária em um século, tentam fazer o show continuar – mesmo que isso signifique atuar com nove atletas a menos ou viajar por 2 mil quilômetros.

Por Gabriel Araujo