Parquinho de Sonhos

Serei ginasta. A frase acompanhava a foto de uma menina sorridente e cheia de sonhos. Juntas, compunham o perfil de Raíssa no WhatsApp, no início de 2016. Em novembro do ano anterior, ela havia passado pela peneira de um clube e passaria a treinar ginástica artística em março. A história da Raíssa com o esporte, porém, começou um pouco antes.

Pelo que a mãe, Viviane, se lembra, a pequena tinha cerca de quatro anos e meio quando começou a frequentar as aulas de ginástica artística no colégio em que estudava. No começo, foi por acaso: depois de um problema com as aulas de ballet, a mãe decidiu colocá-la nas aulas de ginástica, para que a menina não perdesse o gosto pelo esporte. Ela só não esperava que o gosto fosse se tornar tão grande. E o talento também.

Quando aconteceram os Jogos Marianos, competição promovida pelo colégio, Raíssa se destacou no boca-a-boca das demais mães. Já que opinião materna não vale nessas horas, a própria Viviane não tinha noção se a filha era boa mesmo ou não. Mas de tanto ouvir nossa!, ela é muito boa de cá e mas ela é boa mesmo, hein? de lá, acabou acreditando. A mãe de uma amiguinha de Raíssa, então, sugeriu que Viviane a levasse na peneira do Clube Campineiro de Regatas e Natação, referência em ginástica artística na cidade interiorana. Insegura, foi falar com a professora de Raíssa no colégio e ouviu que a filha ainda não estava pronta. Precisaria amadurecer mais no esporte antes de tentar vaga no time que, como dizem, só pega menina pronta. A mãe da colega insistiu, disse que a menina era boa sim. Na dúvida, Viviane levou. Afinal, o máximo que poderia acontecer era ela não passar, e que mal tem nisso?

A peneira, numa tarde de novembro de 2015, aprovou duas garotas das onze participantes. Mas tem vez que não aprova nenhuma, ou só uma. Não tem número certo, mas precisa ser boa, ter entre quatro e oito anos, estar com “as coxinhas grossas e os bracinhos fortes”. Apesar de cumprir todos os requisitos, faltavam os braços prontos em Raíssa mas, mesmo assim, ela foi uma das duas aprovadas. Os treinos começariam em março do ano seguinte e a ansiedade estava grande. “Eu achava que o Regatas ia ser um parque de diversão pra mim”, contou a garota. Foi nessa altura que a pequena mudou o status do whatsapp. A mãe chegou a achar engraçado “a fotinha dela pequenininha, escrito serei ginasta. Tem tamanho pra saber o que quer?”. Ô se tinha.

Raíssa começou treinando de segundas e quartas, das oito às dez e meia da manhã. Por causa da pouca idade, a família ainda tinha receio de deixar a menina ir treinar sozinha. Nas duas primeiras semanas, o pai, Daniel, acompanhou a filha em todos os treinos. Levava o notebook e ficava, durante duas horas e meia, esperando; se Raíssa precisasse dele, ele estaria ali.

Mas essa não foi a única preocupação no início. Acostumada a estudar no período da tarde, a menina não estava habituada a cair da cama logo cedo. E, agitada do jeito que é, não parecia, aos olhos da mãe, que teria a disciplina necessária para o esporte: “nunca, na minha cabeça, que eu achava que ela ia fazer uma coisa dessa tão disciplinada”. Mas ela provou que sabia o que queria; em dia de treino, acordava antes de todo mundo e ia ao quarto dos pais para chamá-los. Foi aí que caiu a ficha para eles: a filha realmente gostava da ginástica artística.

Esse ano, para treinar mais, Raíssa precisou mudar de turno na escola. Com muitos amigos, a menina tinha uma panelinha forte no colégio e, mais uma vez, deixou a mãe surpresa. Chorou, largou os amigos para trás, mas disse que amava a ginástica. Agora, ela já tem novos amigos e continua encontrando os antigos; alguns deles são sócios do mesmo clube que a pequena treina.

Atualmente, com quase oito anos, treina dez horas por semana, em práticas divididas entre terças, quintas e sextas. O centro de treinamento fica no último andar do clube, depois de noventa degraus de escada; nada de elevador. Lá em cima, um tecido divide o espaço entre a ginástica artística e a ginástica rítmica. Do lado da porta, meninas com pés na cabeça, música tocando e ensaio acontecendo. Do lado de lá, Raíssa brincando com as amigas na cama elástica; faltam alguns minutos para o treino começar.

O espaço da ginástica artística é grande. As cerca de 30 meninas estão divididas em três grupos, referentes à faixa etária e ao nível técnico. As mais velhas, de 10 a 16 anos, treinam cinco vezes na semana, enquanto as outras duas turmas, de 8 a 11 e de 6 a 9 anos, praticam três dias. Raíssa está no chamado grupo três, das mais novinhas. Todas elas, independente da idade, usam top e shortinho estampados idênticos, numa espécie de animal print colorido; as cores predominantes são rosa e verde.

O alongamento pré-treino começa. As meninas maiores fazem os exercícios sozinhas no tablado, usado para treino do solo, e que fica bem no meio do espaço, rodeado pelos outros aparelhos. Enquanto isso, as menores ficam perto de uma cama elástica longitudinal que termina na mesa, para o treino de saltos. Elas se alongam com dois professores, um homem e uma mulher, e seguem as orientações deles.

Do lado direito do tablado, um grande espelho se mistura à parede que exibe as dezenas de troféus já recebidos pelo clube em torneios. A turma de Raíssa ainda se restringe a apresentações, mas logo começarão a competir, assim como as garotas mais velhas.      Raíssa está na primeira fileira de meninas, com os cabelos pretos e curtos amarrados com um elástico verde, que pede ajuda às presilhas rosas que seguram a franja. A barriga de fora, de cor igual ao do magnésio nas mãos, quase encosta no chão enquanto as pernas estão alongadas em um espacate perfeito.

Terminado o alongamento, as pequenas seguem para o tablado enquanto as maiores se dividem entre as barras assimétricas, que ficam em frente ao espelho, e a mesa de salto. No espaço de treino do solo, a treinadora pede que as meninas se dividam em três fileiras, para executarem os exercícios. Chassé Jeté, chassé jeté, chassé jeté… a professora repete enquanto as crianças dão pequenos pulinhos seguidos de um salto que joga uma das pernas para frente e a outra para trás. O professor vai corrigindo, para que o passo fique aperfeiçoado.

O solo é o aparelho que Raíssa mais gosta, porque é o mais fácil para ela. No entanto, tem consciência de que, conforme for subindo de nível, a dificuldade vai crescer. “Mas eu já estou treinando pra poder ser boa e conseguir”.

E está mesmo. No chassé jeté, a perna de trás dela não sobe tanto quanto o desejado, e o professor mostra a falha. A pequena tenta novamente algumas vezes e, quando o treinador a elogia, abre um sorriso e segue praticando. O próximo exercício é a estrelinha, que Raíssa executa com talento, tanto com ambas as mãos quanto com apenas uma em apoio no solo. Que nem gente grande, ostenta uma postura impecável, bracinhos esticados para o alto e mãozinhas perfeitamente voltadas para trás.

A performance continua, agora na trave de equilíbrio. Em meio a sorrisos e brincadeiras, Raíssa e as amigas se divertem esperando a vez de subir no aparelho. Não é o que se vê, porém, do outro lado do tablado. As garotas mais velhas treinam nas barras assimétricas e, talvez para aliviar a tensão da seriedade do treino e dos olhares críticos dos treinadores, se apoiam; aplaudem a cada fim de série que as colegas façam, por mais que estejam cheios de defeitos ou que a atleta saia descontente com a atuação. A diversão que as menores compartilham ecoa pelo tablado até a cumplicidade que as mais velhas mantêm. Em tudo que é esporte, por mais que seja individual, há equipe.

E é nesse contexto que Raíssa se concentra, ao lado de uma amiga, cada uma em uma trave. Ambas executam a mesma série de exercícios, que parece simples. O aparelho é alto para as meninas, que são menores que a cintura do professor, e qualquer falha em uma tentativa mais complicada pode acabar em uma queda. Mas isso não impede Raíssa de descer da trave ao melhor estilo: com um salto que termina com os pés cravados ao chão.

As piruetas e estrelinhas ficam em segurança; do lado do aparelho, há uma trave “sem pernas”. Apoiada ao chão, permite que as meninas tentem novos movimentos sem correrem o risco de cair. E é aí que Raíssa treina, focada, enquanto espera sua vez de subir novamente e executar a série de exercícios lá do alto, rumo ao aperfeiçoamento.

Empolgadas, as garotas correm para ajudar os treinadores a colocar os colchões embaixo do próximo aparelho. O treino agora é nas barras assimétricas, situadas do lado oposto ao espelho, e a professora sobe em uma base de madeira para segurar as meninas, que ainda não conseguem saltar sozinhas de uma barra até a outra. O que, diante das atletas maiores, parece um pulinho, torna-se um longo voo entre as duas barras quando os corpinhos das mais novas estão em jogo.

Antes de saltar, porém, elas precisam se segurar na barra mais baixa, dar um giro nela apenas com as mãos no aparelho e terminar em pé na barra, para poder dar impulso para o salto até a mais alta. Para terminar em pé no aparelho, o giro tem que ter tido bastante arranque, o que exige força dos braços. Na primeira tentativa, Raíssa não consegue. Não por falta de esforço; o rosto já está vermelho de tanta força colocada. Esperando a vez de tentar novamente, ela vai, então, às barras paralelas, e as atravessa apenas com a força dos braços, como quem brinca em um parquinho, mas com semblante bem focado. Na segunda tentativa, consegue executar o exercício, que ainda repete algumas vezes.

Antes do único intervalo da aula, o treino é de salto, feito na cama elástica. Uma das garotas mais velhas ensina as pequenas a pularem, servindo de exemplo para elas. O aparelho é longitudinal e permite que as meninas corram, peguem impulso e saltem, conforme a orientação dos professores.

A leveza de Raíssa entre um exercício e outro, as risadas divididas com as amigas e os lugares que escala, revelando uma garota espoleta, dão espaço ao foco quando o assunto é treinar.

Pouco antes das quatro horas de aula terminarem, o assunto é a força. As meninas treinam os músculos dos braços e do abdome na barra fixa, e Raíssa segue bastante focada. Sua parte preferida do treino é justamente o preparo físico. Desde já, ela entende a importância dele na execução dos exercícios. O grande uso da força pela criança costumava ser, porém, o maior receio da mãe. Hoje, ela confessa que ainda teme isso, mas se preocupa ainda mais com a questão psicólogica.

Para a menina, os treinos são, sobretudo, brincadeira. Mas o parque de diversões de Raíssa é também palco de pressão, frustração e toda a carga que o exercício envolve. Viviane, que é terapeuta, já trabalha a questão psicológica referente ao esporte com a filha em casa. Ela sabe que, por enquanto, a garota treina porque gosta e porque isso a deixa feliz. O futuro, cabe ao que Raíssa vai querer mais pra frente. “Eu não sei se ela vai querer, vai que no ano que vem ela não quer mais. Mas, se a Raíssa virar e falar ‘não, mãe, eu quero’, aí a gente vai ver o que dá pra fazer”.

Na inocência da pequena, que ainda nem completou oito anos, o desejo já está na ponta da língua: “Quando eu crescer eu vou querer ser ginasta, porque o meu sonho é ser ginasta com as minhas amigas”.