O raiar de AURORA

“Eu era uma rosa/Eu era um animal/Não me deixe mudar/Não me deixe ir”. Aurora Aksnes, a artista norueguesa que conquistou o mundo com seu pop alternativo, cantava essa letra em um show no final de 2019, poucos meses antes do mundo se fechar por conta da pandemia, em um ponto alto da sua expressividade em apresentações ao vivo. Usando um vestido coreano verde-claro com bordados de flores, ela se camuflava perfeitamente com o ambiente à sua volta: uma floresta em Bergen, na Noruega, região onde ela nasceu.

A apresentação fazia parte de uma série de TV chamada HAIK, da emissora de rádio e televisão norueguesa NRK, e reuniu diversos fãs da cantora – que, partindo do que se observa no vídeo, abrangem um segmento diverso, composto principalmente por adolescentes e jovens adultos, mas atraindo também pessoas mais velhas e mais novas. Quando a música fica mais agitada, até uma criança no colo da mãe não fica imune ao ritmo, sorri e começa a se sacudir no embalo da cantora.

Mas Aurora, ou AURORA, como é estilizado seu nome nos lançamentos oficiais, não é mais um segredo da Noruega: a artista tem quase 14 milhões de ouvintes mensais no Spotify, e o seu primeiro hit, “Runaway”, lançado em 2015, tem mais de 250 milhões de visualizações no YouTube. Ela já lançou três álbuns de estúdio, e recentemente viu um “boom” na sua popularidade quando a própria Runaway viralizou no TikTok, tornando-se a trilha-sonora para um filtro utilizado mais de 1,5 bilhão de vezes na plataforma. 

No Brasil, ela já fez três turnês, gravou a música de abertura da novela Deus Salve o Rei, da TV Globo, e foi até tema de uma questão da Fuvest, vestibular da Universidade de São Paulo, em 2019. Seu incrível controle vocal e suas performances energéticas e teatrais fazem dela um entretenimento vigoroso.

Ainda assim, Aurora tem um estilo pouco usual para uma estrela do pop, muitas vezes tendendo para uma imagem tribal, enquanto temas como natureza, espiritualidade e animalidade tornam-se cada vez mais presentes nas suas músicas. 

A canção citada no começo desse texto, “All Is Soft Inside”, é um exemplo disso, apresentando uma percussão hipnótica enquanto a cantora explora a essência da experiência humana, abordando as emoções que imperam por trás de palavras nunca ditas. Porém, a autenticidade e convicção com que Aurora apresenta essa canção ao público, com uma performance que vai ficando mais intensa a cada minuto, torna essa uma experiência transcendente e marcante para todos ali presentes, e faz com que as primeiras palavras de Aurora ressoem ainda mais: “Não me deixe mudar, não me deixe ir”. Afinal, não são muitos os artistas que conseguem promover uma performance explosiva no meio de uma floresta, sem o auxílio de efeitos especiais. 

Em uma entrevista no começo de maio, Aurora reforçou para mim a importância do controle que ela exerce sobre sua arte e sua imagem, algo que contribui com essa perceptível autenticidade: “Eu acho muito ruim quando as pessoas pensam na indústria da música e assumem que os artistas não têm controle sobre suas coisas. Ninguém controla a minha imagem além de mim mesma. Eu faço o que eu quero, e é muito fácil. É muito fácil ser eu mesma. E isso torna as coisas mais reais e verdadeiras.”

Como é de se imaginar, Aurora compõe as suas próprias músicas e participa de boa parte do processo de produção. Já em relação a sua aparência, são as suas duas irmãs mais velhas, Viktoria e Miranda Aksnes, que fazem suas roupas e maquiagem, respectivamente, desde o começo da sua carreira. Mesmo quando o seu nome começou a ficar conhecido, e os empresários e agentes de marketing tiveram que se intrometer na sua imagem pública, Aurora reconhece que as pessoas do seu time sempre foram “todas muito respeitosas e realmente me escutavam.”

Origens orgânicas

Mas Aurora, que hoje tem 25 anos, entrou no mundo da música quando ainda era adolescente, e essa confiança toda não surgiu da noite para o dia. Como disse a sua irmã Viktoria Aksnes, designer de moda e estilista, “Ela é mais ela mesma agora do que no início de sua carreira. Eu acho que, no começo, ela sem querer tentou se basear em como a indústria queria que ela fosse, como uma princesa escandinava, do gelo e inocente, enquanto na verdade ela é mais como uma criatura da floresta profunda, mais selvagem, expressiva e complicada.” 

A carreira de Aurora começou de uma maneira inesperada: quando tinha cerca de 16 anos, apresentou uma música que ela mesma tinha escrito, “I Have A Dream”, em um evento da sua escola. Uma pessoa gravou a performance e postou no Facebook. O vídeo chegou a Geir Luedy, músico e empresário da agência Made Management, de Bergen, que viu o potencial de Aurora e perguntou se ela não gostaria de investir em uma carreira musical. Embora a primeira resposta tenha sido “não”, Aurora depois voltou atrás na sua decisão e iniciou a vida que ela segue até hoje. 

A primeira aparição de Aurora na televisão ocorreu em 2014, quando tinha 17 anos. Apresentando o seu primeiro single “Awakening”, que narra um suicídio, frente a uma platéia no auditório da emissora NRK, ela usava roupas escuras, rímel e brilho labial, e tinha movimentos mais contidos e tímidos. Ou seja, ainda a um longo caminho de distância das performances explosivas, com danças, cantos tribais e roupas esvoaçantes.

Sobre se apresentar no início da sua carreira, Aurora disse: “Eu me sentia extremamente nervosa no palco, e eu não gostava disso nem um pouco. Ficar na frente de tanta gente não é algo natural.”

E ponderou, “Mas eu lidei com isso pensando sobre qual era o meu propósito. Eu preciso dar algo em retorno para essas lindas pessoas que estão me fazendo desconfortável ao me assistirem. Elas vieram aqui por um motivo, e eu preciso dar o meu melhor para fazê-las se sentirem bem. No momento em que estar no palco era mais sobre o público do que eu mesma, eu consegui ficar menos nervosa. Porque é tudo sobre as pessoas.”

Antes de embarcar em turnês mundiais, seus shows ocorriam em lugares pequenos, principalmente na Noruega e em países próximos. Em março deste ano, Geir Luedy, empresário de Aurora, deu uma entrevista ao podcast norueguês Braksnakk sobre como, no princípio de tudo, eles perdiam mais dinheiro do que ganhavam. 

Luedy conta que, em uma turnê, eles fizeram 200 shows em que receberam apenas 200 libras (hoje, equivalente a 1.400 reais) por cada um. Um dos maiores prejuízos foi quando saíram de um show em Vadsø, no extremo norte da Noruega, e foram para outro show no País de Gales, no Reino Unido, com a equipe inteira – incluindo banda, empresário, operadores de luzes e de som – de avião. No total, incluindo passagens aéreas, aquele show custou cerca de 9 mil libras (equivalente a 60 mil reais) para ser realizado. Foi apenas a partir da terceira turnê que começaram a ter algum lucro.

Ele diz que a estratégia que foi adotada no começo – de construir tudo tijolo por tijolo – foi arriscada, mas acabou compensando porque os shows foram importantes, e o público realmente se conectou com a música de Aurora. Muitos empresários acreditam que é preciso encontrar algo comercial para obter sucesso, mas Luedy acredita que é preciso encontrar algo único.

Arte em cada detalhe

Aurora é a única musicista de sua família. Ela começou a tocar piano aos 6 anos de idade, e muitas das músicas que foram lançadas no seu primeiro álbum, “All My Demons Greeting Me As A Friend”, ela escreveu quando era ainda uma pré-adolescente. O controle que tem sobre sua voz, algo que surpreende até coaches de voz no YouTube, que incluem professores de canto e cantores de ópera profissionais, ela diz que vem da sua “facilidade para lidar com notas”.

Durante a criação do seu primeiro álbum ela também aprendeu a produzir suas próprias músicas, o que facilitou a criação dos álbuns seguintes. Em uma entrevista em 2018, abordando a sua nova independência criativa, ela disse: “Eu sempre soube o que eu queria, desde que eu era um embrião, e agora eu tenho as ferramentas para fazer isso virar realidade. Eu sei produzir, e sei tocar mais instrumentos. No segundo álbum, eu mesma que toquei a bateria e a percussão.”

A bateria tem um papel importante na música de Aurora, que frequentemente assume tons tribais e integra cânticos às melodias pop mais tradicionais, inspirando-se em culturas indígenas e africanas. É principalmente a percussão que rege as danças de Aurora em cima do palco, e o movimento do público no chão. Mas a inspiração que deriva de culturas estrangeiras não está presente apenas na sua música, mas também nas suas roupas e maquiagem. 

Viktoria Aksnes, a irmã “do meio”, que tem sua própria linha de roupas e trabalha para a casa de moda norueguesa Holzweiler, é quem faz grande parte das roupas que Aurora usa em suas aparições públicas, embora a cantora também dê palpites no processo: “Às vezes é um pedaço de tecido sujo e amassado de uma parte do mundo que ela visitou, ou uma foto de inspiração que ela encontrou, e ela quer que eu me inspire a partir disso. Às vezes eu tenho sozinha uma ideia que eu tenho certeza que ela vai amar. Às vezes nós sentamos e desenhamos juntas. Às vezes é um acessório vintage que ela comprou e quer que eu modifique. Nenhum projeto é igual com ela – eu amo isso.”

Segundo Viktoria, a inspiração geral vem do gosto pessoal da irmã e do momento que ela está passando em sua vida, embora alguns temas não mudem muito: “Eu sempre sou atraída pelo Oriente em relação à estética no geral. Roupas tradicionais de culturas diferentes sempre me inspiram. Agora mais do que nunca, Aurora está inspirada pelas minhas décadas de moda favoritas: os anos 1920 e 30. Feminino, cintura baixa, conforto e sensualidade divertida… É uma era muito rica e exótica.”

Das peças que ela mais teve orgulho de fazer, Viktoria cita a roupa que Aurora usou no tapete vermelho dos Oscars em 2020, por sua participação no filme “Frozen 2”, da Disney. A jaqueta em estilo kimono foi inspirada na sua própria coleção, “her, by Viktoria Aksnes”. Ela também se orgulha de algumas roupas que fez para os videoclipes de Aurora, citando Queendom e The River como dois dos favoritos. 

Miranda Aksnes, por sua vez, é a irmã mais velha e a responsável pela maquiagem, que ela diz ser “geralmente bastante natural. Aurora tem traços bastante fortes que eu tento realçar, como as maçãs do rosto, mas ainda deixando de uma forma natural.” Miranda é uma maquiadora freelancer que já trabalhou com outros artistas em Bergen. Quando a irmã iniciou a carreira musical, foi a parceria perfeita: “Como se estivesse destinado a ser assim! Havia muitas viagens, e era muito importante que eu pudesse ficar perto e ajudar em tudo o que estava acontecendo. Nós somos muito próximas como irmãs, então foi bom para eu conseguir cuidar dela.”

A maquiagem mais proeminente de Aurora é a que ela usa na capa de dois álbums: “Infections of a Different Kind (Step 1)” e “A Different Kind of Human (Step 2)”, na forma de pintura corporal. “A ideia da pintura surgiu na própria sessão de fotos para a capa do álbum. Não foi planejado – nós só estávamos tentando coisas diferentes, e deu certo e investimos nisso. Aurora gosta de expressar coisas simbólicas com sua maquiagem. Então tentamos dar a ideia de que eram veias ao longo do seu corpo, para simbolizar a manifestação do que está dentro no lado de fora.”

Durante as turnês, Miranda diz que a maquiagem não costuma estar muito presente. “Mas ela sempre estraga o cabelo dela depois que eu tento fazer ele ficar menos frizado! É muito engraçado e fofo. Como se o coração dela não quisesse que ela ficasse muito ‘certinha’. Ela é tipo um animalzinho.” O cabelo de Aurora, uma atração à parte, é curto exceto por duas mechas compridas de cada lado, que a cantora diz que foi uma inspiração trazida do anime, e que se justifica pelo fato de ela não gostar de usar o cabelo longo, mas gostar de fazer tranças. 

No final de tudo, com a maquiagem e todos os acessórios no lugar certo, Aurora chega a parecer um personagem da mitologia nórdica, ou uma pequena guerreira pronta para batalha.

Sem cura para mim

Apesar de alguns temas recorrentes, e da autenticidade que permeia tudo, o estilo de Aurora está evoluindo constantemente. No dia 7 de julho, ela lançou “Cure For Me”, o primeiro single do seu próximo álbum ainda não anunciado. O vídeo que acompanha a canção, e que ela mesma dirigiu, mostra a cantora rodeada por dançarinos usando máscaras de Veneza, e a tonalidade escura verde-azulada da imagem emula um carnaval sombrio.

Coincidentemente, a faixa surgiu como uma reação ao conceito de “cura gay” e às terapias de reversão sexual, ainda muito presentes em diversos países ao redor do mundo, como o Brasil. Nela, Aurora, que se identifica como bissexual, mais uma vez celebra as diferenças e anuncia: “Eu não preciso de uma cura”. 

Após um longo período de calmaria durante a pandemia, as coisas parecem começar a se agitar de novo para a cantora. Quando perguntei quais foram os momentos favoritos de sua carreira na música até agora, ela disse: “Eu não passo muito tempo no passado, então eu acabo esquecendo de várias coisas que aconteceram. Mas cada momento foi bom – cada show, cada encontro com os fãs. Minha primeira vez no Brasil… Minha segunda e terceira vez também! A primeira vez que eu notei que existiam tantos warriors e weirdos [termos que ela usa para se referir aos fãs, em português “guerreiros” e “esquisitões”] por aí. Isso foi muito grande para mim, quando eu notei que eu iria sair da Noruega e conhecer pessoas que me amam e que eu amo. Todos os dias foram fantásticos, embora às vezes difíceis. Mas eu sou grata por poder fazer aquilo que eu sinto que é o que eu devo fazer nessa Terra.”

Com suas duas irmãs à bordo, não há limites à vista para os seus novos projetos. Avaliando o que mudou desde aquela primeira apresentação na televisão norueguesa 7 anos atrás, sua irmã Viktoria faz uma observação: “Como todos nós deveríamos fazer, Aurora está se tornando cada vez mais livre nas sua própria maneira de se expressar, e é possível ouvir isso na música também. Faz parte do amadurecimento descobrir que não existem grades nas ‘caixinhas’ em que a gente se coloca ou que a sociedade nos coloca. Você pode sair e fazer o que quiser, quando quiser. Muitas pessoas não percebem isso.”

Por Isabella Velleda / isabella.velleda@usp.br