Eurovision: onde a política e a música se encontram

O Eurovision Song Contest, ou Festival Eurovisão da Canção, é provavelmente o maior evento cultural do mundo sobre o qual você nunca ouviu falar. Apenas em 2021, foram mais de 180 milhões de pessoas assistindo à competição, em que diversos países, a grande maioria europeus, enviam representantes. No fim, ganha a música mais votada. Mas, para além de um “The Voice” continental, o festival também é palco de uma convergência entre política e música.

Em 2021, o Eurovision ficou mais famoso ao redor do mundo com a vitória da banda italiana Måneskin, cujos membros se tornaram um fenômeno no TikTok e no Twitter. Fora do continente europeu, porém, o evento ainda recebe pouca atenção. As principais exceções vêm de Israel, Armênia, Azerbaijão e Austrália, que participam do evento mesmo sem estar na Europa, e dos Estados Unidos, onde o festival é transmitido na televisão.  

A vitória da banda italiana Måneskin aumentou a popularidade do Eurovision nas redes sociais. Imagem: NPO/NOS/AVROTROS NATHAN REINDS

Antes disso, o Eurovision já ficou famoso por músicas bem humoradas, sátiras, performances “toscas” que ironizam o próprio festival e também por lançar à fama ícones da música. É o caso da banda Abba, vencedora em 1974, e das cantoras Céline Dion, ganhadora de 1988, e Lara Fabian. Também já teve participantes de peso, como a banda Katrina and the Waves, ganhadora de 1999, e a cantora Bonnie Tyler. A música “Euphoria”, sucesso internacional, ganhou em 2012, e o clássico “Volare” deu o segundo lugar para a Itália em 1958. Ainda em 2021, o famoso rapper Flo Rida fez uma participação na música de San Marino, um microestado cercado pela Itália, mas amargou o 22º lugar.

Eurovision teve encontros com a política desde sua origem

Mas mesmo em um ano com audiência mais “internacional”, a política por trás do evento ainda passou batido para muitos espectadores. Para Dean Vuletic, pesquisador do Centro de Pesquisa da História das Transformações da Universidade de Viena, o grande evento político desta edição do Eurovision foi a desqualificação da Bielorússia. O país é governado pelo ditador Aleksandr Lukashenko, que enfrentou intensos protestos contra seu regime em 2020, e o país foi impedido de participar do festival após se recusar a alterar a música que seria enviada para a competição, com um tom de elogios e defesa do político.

Oficialmente, a União Europeia de Radiodifusão (EBU em inglês), que organiza o Eurovision, introduziu uma regra em 2005 que é “contra o conteúdo político [nas músicas] inscritas”. Entretanto, a própria origem do festival acaba se entrelaçando com o ambiente político europeu, e com ambições e rivalidades entre diversos países.

A ligação entre a política e o Eurovision começa na própria origem do festival. Autor do livro “A Europa pós-Guerra e o Eurovision Song Contest”, Vuletic afirma que a competição “sempre foi política”, e explica o motivo: “as músicas aparecem com o nome dos países, apesar delas representarem na verdade os serviços públicos de radiodifusão nacionais que são membros da EBU”. 

Essa escolha de categorização foi feita pela própria EBU, com o argumento de que seria mais fácil para os jurados e o público associarem as apresentações aos países, mas o autor destaca um outro motivo por trás da decisão. “A EBU decidiu isso para tornar o evento mais excitante: afinal, as pessoas ficam mais passionais com uma competição entre países do que entre emissoras de televisão”.

Mas afinal, como surgiu o Eurovision Song Contest? O festival começou em 1956, inspirado no Festival de Sanremo, uma competição musical italiana. No contexto do pós-Segundo Guerra Mundial, o Eurovision foi idealizado como uma ferramenta para aumentar a integração entre os países do continente. 

Lys Assia foi a primeira vencedora do festival, representando a Suíça. Foto: Eurovision Song Contest

Se naquele ano foram apenas 7 países competidores, em 2021 foram 39. Com o tempo, o festival foi ganhando regras e mudanças. Surgiram as semifinais de classificação, os seis países que não precisam participar dela (Espanha, França, Itália, Reino Unido, Alemanha e o ganhador do ano anterior), a regra de que o país ganhando sedia o festival no ano seguinte. A própria regra para evitar conteúdo político, em 2005, surgiu após uma manifestação na canção ucraniana a favor da chamada Revolução Laranja, contrária ao governo e que ocorria no país ao mesmo tempo em que ele sediava a competição.

Festival tem sido usado para o chamado “nation branding”

Outro elemento chave para entender os contornos políticos do Eurovision é o seu sistema de votação. Hoje, a votação se divide em um júri “profissional” e uma votação popular. Nelas, é comum que países votem em aliados de longa data. Uma “tradição”, por exemplo, é que a Grécia e Chipre troquem a pontuação máxima todo ano. “Eu acho que o Eurovision sempre terá um impacto político e será uma ferramenta política, porque os europeus gostam de interpretá-lo pelas mensagens políticas, em especial quando chegam os votos”, comenta ele.

Tiago Batista, que pesquisou a geopolítica da competição em seu mestrado no Instituto Universitário de Lisboa, divide alguns padrões de votação em grupos. Há o “voto cultural”, caso de Grécia e Chipre que “trocavam sempre pontuação máxima, pois falam a mesma língua e culturalmente são quase o mesmo país”, o “voto vizinho”, em geral entre países que fizeram parte da URSS e da Iugoslávia e que votam entre si e o “voto imigrante”, composto pela diáspora. “Portugal recebe sempre muitos pontos dos países onde tem muitos emigrantes, como Suíça, França e Bélgica, e entrega aos países com grandes comunidades em Portugal, como Ucrânia, Moldávia e Romenia”, explica o pesquisador.

Assim, Vuletic destaca que, politicamente falando, o Eurovision sempre foi um poderoso instrumento pró-Europa. Não à toa, ele chegou a ser patrocinado pela Comunidade Econômica Europeia, uma espécie de mãe da União Europeia. Batista opina que ela foi “quase como a precursora da União Europeia, pois conseguiu juntar os países da Europa Ocidental antes do Tratado de Roma de 1957, que fundou politicamente a, agora conhecida como, União Europeia”.

Esse uso de “mega eventos” na Europa para incentivar uma união continental não fica restrito à música. O professor lembra de iniciativas no campo do esporte também, como a Champions League e o Campeonato Europeu. A ideia é colocar todos os europeus juntos em suas casas, assistindo à mesma programação, falando sobre o mesmo assunto e desfrutando de uma competição muito menos violenta e danosa.

O que aconteceu, na opinião dele, é que conforme o Eurovision foi crescendo, com mais países e audiência, “as questões políticas” mudaram, e o potencial do festival para beneficiar países também aumentou. Batista lembra que, atualmente, a competição é “o evento não-esportivo de maior audiência do mundo”, e portanto pode ser muito benéfica, quando bem aproveitada.

Hoje, a competição é um importante instrumento do chamado soft power, ou poder brando, um termo que define formas diplomáticas e culturais de um país influenciar outros, exercendo uma espécie de dominação pacífica. O doutorando em literatura e cultura da UFBA, Sanio Santos da Silva, define a competição como “uma grande plataforma de nation branding”, se referindo ao processo de criação de imagem de um país para o público. 

Ele explica que “a ideia do nation branding é editar a identidade nacional e propagar o que quer, e o Eurovision é bom pra isso porque é rápido, as pessoas estão se divertindo, bebendo. É um momento de celebração, entretenimento, mais efetivo que passar em um jornal, em que as pessoas estão tensas, vendo coisas mais sérias”. 

“Ucrânia, Letônia, Estônia por exemplo usaram para se afastar da URSS. Hoje, acredito que alguns países fazem o nation branding”, observa. Já Vuletic observa que é comum que os países sede do evento usem a audiência para exaltar todo o potencial turístico do país, e aproveitem a oportunidade para mostrar que estão prontos para sediar outros eventos internacionais. Foi o caso, por exemplo, da Rússia, que sediou o Eurovision antes da Copa do Mundo e das Olimpíadas de Inverno, e do Azerbaijão, que sediou antes de tentar ganhar o direito de receber as Olimpíadas de Verão.

Outro exemplo de tentativa de usar o Eurovision para beneficiar o país vem de uma ligação do festival com o público LGBTQIA+, que hoje compõe um bloco de fãs fiéis. Em 2018, por exemplo, a Irlanda seguiu tentativas da Rússia em 2015 e teve uma “ apresentação bem gay-friendly”, observa Samio. “Eu acho que talvez a Irlanda de fato queira isso, esteja querendo talvez trabalhar essa imagem, até por ser um país visto como saturado de catolicismo”, destaca.

Apresentação da Irlanda em 2018 retratou um casal de homens. Fonte: TASS
As disputas geopolíticas: de Israel à Rússia

Mas o Eurovision também já se encontrou em disputas políticas intensas, e que refletiram em acontecimentos no próprio festival. Um caso clássico é o de países que se recusaram a participar da competição devido à presença de Israel. Foi o caso do Marrocos em 1981 e do Líbano em 2005, ambos com grandes populações muçulmanas que veem negativamente o país devido ao conflito de décadas com os palestinos e a ocupação de territórios dessa população. Em 2019, a competição ocorreu em Israel, e os representantes da Islândia foram advertidos depois de exibirem faixas pró-Palestina. 

Representantes da Islândia foram penalizados após exibirem a bandeira da Palestina. Foto: Reprodução

As manifestações com bandeiras, faixas ou cartazes não foram uma novidade. Batista lembra que, em 1964, um ativista subiu ao palco após a apresentação de Portugal com um cartaz que dizia “boicotem Franco e Salazar”, em referência aos ditadores espanhol e português.

Edição de 1964 foi marcada pelo protesto contra ditadores da Espanha e de Portugal. Foto: Reprodução

É comum também que eventos políticos influenciem as canções do ano, como lembra o pesquisador: “Em 1989 cai o muro de Berlim e, na edição de 1990, quatro países levam músicas acerca de muros, amizade e construção europeia”. Os países eram Alemanha, Áustria, Noruega e Itália, e o último venceu com uma “canção sobre a futura passagem da Comunidade Econômica Europeia para União Europeia”.

O exemplo de Sanio Santos da Silva sobre os países que saíram da União Soviética também mostra como o Eurovision reflete o contexto político do momento. O começo dos anos 2000, poucos anos após o fim da URSS, foi marcado por uma sequência de vitórias de países ex-soviéticos: Estônia, Letônia e Ucrânia. Para muitos, inclusive o pesquisador, esse movimento não foi uma coincidência. A vitória da Turquia, também no começo dos anos 2000, foi vista como um marco na aproximação do país com a Europa. Já em 2007, a Sérvia se tornou o primeiro país da antiga Iugoslávia a ganhar a competição, e isso apenas um ano depois da separação com Montenegro. 

Em alguns casos, a presença da política no Eurovision ficou ainda mais explícita. Foi o caso do festival de 1976. Ele ocorreu apenas dois anos após a ocupação do norte de Chipre pela Turquia, em 1974. Assim, naquele ano, a Grécia enviou uma canção que tinha como tema a guerra, a ocupação e os refugiados, uma crítica pouco sutil ao país. Já em 2016, a Ucrânia ganhou com uma canção que fazia referência à perseguição dos tártaros crimeios por Joseph Stalin, uma forma de relembrar as ações do líder e, ao mesmo tempo, criticar a Rússia.

Outro caso marcante foi em 2009, quando o evento ocorreu na Rússia. Em 2008, o país havia atacado regiões da Geórgia, em apoio a áreas separatistas do país. Já no ano seguinte, a música selecionada pela Geórgia foi “We Don’t Wanna Put In”, uma referência ao presidente russo Vladimir Putin. A Rússia criticou a escolha da música, a EBU tentou fazer a Geórgia escolher outra e, diante da negativa, o país não participou do festival 

A Ucrânia e a Rússia acabaram se tornando, inclusive, os dois países que mais levam questões políticas para o festival, ao menos na década de 2010. O motivo é a invasão e anexação pela Rússia da península da Criméia, originalmente um território ucraniano, em 2014. Em 2017, quando o evento ocorreu na Ucrânia, a cantora que representaria a Rússia foi proibida de entrar no país por ter feito uma apresentação na Crimeia, após a anexação. A própria vitória de 2016, como dito anteriormente, serviu como uma crítica à Rússia, e os dois países também enviaram canções que remetiam ao conflito no festival de 2014, em geral de forma mais sutil para evitar punições como a que a Bielorússia sofreu em 2021. 

A suspensão da Bielorússia também não foi o único evento político que afetou o festival no ano. A Armênia acabou optando por não participar, dizendo que era impossível planejar uma performance a tempo do festival. O anúncio foi visto como um sinal dos efeitos do conflito com o Azerbaijão em 2020, pela região de Nagorno-Karabakh (reivindicada pelo Azerbaijão mas habitada principalmente por armênios). A Armênia saiu derrotada do conflito, e o país mergulhou em uma onda de protestos contra o primeiro-ministro como resultado.

Outro acontecimento que chamou atenção foi a chuva de críticas contra o representante da Macedônia do Norte, feitas pelos próprios macedônios. O cantor Vasil Garvanliev precisou tirar um vídeo do ar após ser acusado de fazer propaganda pró-Bulgária ao incluir as cores da bandeira do país no clipe de sua música. A relação entre a Bulgária e a Macedônia do Norte se deteriorou após o primeiro país bloquear a continuidade das conversas de inclusão do segundo país na União Europeia, exigindo que a Macedônia do Norte reconheça que sua língua é apenas um dialeto búlgaro.

Representante da Macedônia do Norte foi criticado após cores da bandeira da Bulgária aparecerem em vídeo. Imagem: Reprodução

Mas, para Sanio Santos da Silva, mais importante do que analisar as rusgas envolvendo os integrantes do Eurovision, deve-se ficar atento “a quem não está participando”. O pesquisador cita as saídas da Hungria, a partir de 2020, e da Turquia, a partir de 2013, como bons exemplos de saídas com motivações políticas. “Quando a Hungria saiu, as pessoas começaram a falar que eles saíram por causa da representação de pessoas homossexuais, e o próprio chefe da delegação indicou que esse poderia ser o principal motivo”.

O pesquisador destaca que, sob o governo do populista de extrema-direita Viktor Orbán, a Hungria tem adotado uma postura homofóbica, incluindo com a aprovação de leis recentes que retiram direitos do público LGBTQIA+.

Já a Turquia alegou em 2013 que preferiu deixar o festival por discordar do sistema de votação. Em 2018, porém, o gerente-geral do canal de televisão turco que representava o país no festival disse que não havia planos de retornar ao Eurovision. Um dos motivos para isso, segundo ele, seria a vitória de Conchita Wurst em 2014. Wurst levou a Áustria ao primeiro lugar, mas ficou conhecida internacionalmente como a “mulher barbada”. A vitória da drag queen, extremamente popular na comunidade LGBTQIA+, rendeu posicionamentos críticos de grupos mais conservadores. Algo semelhante ocorreu em 1998, quando Dana International se tornou a primeira pessoa transgênero a ganhar a competição, representando Israel. 

Vitória de Conchita Wurst em 2014 foi citada como motivo para a Turquia não retornar ao festival. Foto: Scanpix Denmark/Reuters
Política e Eurovision: um casamento inseparável?

Dean Vuletic destaca ainda que, além de tensões geopolíticas mais evidentes, o Eurovision também reflete de forma mais sutil outras questões importantes. “Apesar dos organizadores do Eurovision gostarem de promovê-lo como um evento diverso, a competição tem tido uma diversidade linguística bem menor desde que a regra que as canções sejam na língua nacional dos países foi revogada em 1999”. 

O tema é polêmico, já que muitos países defendiam que o Reino Unido e a Irlanda (que teve quatro vitórias na década de 1990) eram beneficiados pela regra. Mas a observação do pesquisador reflete um ponto relevante. De 2000 até 2021, apenas dois vencedores tinham canções nos idiomas nacionais, com os outros em inglês e outros dois misturando o inglês e outra língua. Como comparação, entre 1978 e 1999, foram 13 músicas vencedores no idioma oficial do país.

O pesquisador ainda cita os efeitos da pandemia do novo coronavírus no Eurovision, quando a EBU foi obrigada a cancelar a edição de 2020. “Em 2021 nós pudemos ouvir sobre o impacto da pandemia em algumas canções, que falaram sobre saúde mental, ansiedade e depressão”, observa ele. Os protestos anti-racismo que marcaram 2020, associados ao movimento Black Lives Matter, também não parecem ter passado batido: 2021 foi o ano com o maior número de cantores negros na história do festival. 

O surinamense Jeangu Macrooy representou os Países Baixos em 2021, e incluiu trechos em Sranan Tongo, um idioma do Suriname, que foi colônia do país. Foto: EBU / THOMAS HANSES

“Acho que, ao longo do tempo, o festival tem sofrido com maior ou menor impacto a influência do contexto político internacional, incluindo no conteúdo das canções”, opina Tiago Batista, destacando que “apesar do objetivo do festival serem as canções, o fato de opor países e ter uma grande audiência faz com não consiga ficar alheio a outros fatores, que não os musicais, que o possam influenciar”.

Já Dean Vuletic considera que “a EBU deveria focar mais na importância e sucesso da Eurovision em unir os europeus, assim como no significado das emissoras públicas para a Europa, ao invés de perseguir ambições comerciais globais. Ainda existem muitas questões que dividem os europeus, em especial econômicos e políticos, e as mídias públicas enfrentam novos desafios na era digital”. 

Exatamente por isso, ele considera que “o Eurovision pode ser usado como uma ferramenta para abordar essas duas questões”. Assim, o espectador do festival, novo ou velho, pode ter certeza: além de música, o Eurovision sempre trará um pouco de política para a televisão, mas é praticamente impossível evitar isso.

Por João Pedro Malar