O deslocamento humano em meio ao agravamento dos problemas ambientais

Sem dúvidas, o ano de 2020 ficará marcado como um dos mais desanimadores para a preservação ambiental no Brasil. Mesmo em meio à grave pandemia da covid-19, durante o ano todo, os principais canais de televisão do país mostraram a “evolução” da degradação do meio ambiente, números recordes devastadores e imagens impactantes da destruição de diversos biomas no país, sobretudo a Amazônia e o Pantanal.

As estatísticas comprovam a gravidade da situação. Na Amazônia, dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em agosto, levantados a partir de monitoramento por satélite, mostraram que a taxa de desmatamento da região apresentou alta de 34% em comparação com o mesmo período de 2019. Dados do Inpe de outubro também apresentaram que, até o dia 22 daquele mês, haviam sido registrados 13574 focos de calor na região, número 73% maior do que o mesmo mês do ano anterior.

No Pantanal, os números são ainda mais preocupantes. De acordo com estatísticas oficiais, um total de 14% da área do bioma foi queimada apenas em setembro deste ano, porcentagem que supera as áreas queimadas em todo o ano de 2019. A área já degradada da região até setembro deste ano, aproximadamente 33 mil km², é mais que o dobro daquela atingida no mesmo período de 2019, 12.948 km². 

Os números, frios, chocam e assustam, mas há ainda muitas outras consequências por trás da escalada da degradação do meio ambiente no país. Imagens de resgates de animais da região, como onças pintadas, tamanduás-bandeira e porcos selvagens com suas patas queimadas, representam os efeitos diretos de crimes ambientais na fauna da região, e centenas de voluntários dedicam-se a salvar tais animais.

Outra questão de extrema relevância é a do deslocamento forçado de pessoas que se veem obrigadas a sair do local onde vivem pois as condições climáticas tornaram a vida, neste lugar, insustentável: são os chamados deslocados ambientais. De acordo com levantamento da Agência Pública a partir de dados do Inpe, cerca de 200 focos de incêndio avançaram sobre terras indígenas no bioma em agosto, seguidos por mais 164 em setembro.

A Babel conversou com duas mulheres que decidiram dedicar-se ao estudo e à luta pela preservação ambiental, e abordou questões como a gravidade da situação no Pantanal, a repercussão internacional das políticas ambientais do atual governo, a migração ambiental e a importância de um jornalismo de qualidade em meio a tais realidades, além de pensar em dicas para quem quer ajudar nessa causa e lutar por ela.

Erika Pires, pesquisadora e co-fundadora da RESAMA / Imagem: Acervo pessoal

Erika é advogada pública e pesquisadora. Dedica-se há 15 anos ao tema das migrações ambientais. É doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e co-fundadora da Rede Sul Americana para Migrações Ambientais, RESAMA, uma rede independente de pesquisadores que atuam pela visibilidade, reconhecimento e proteção das pessoas deslocadas no contexto de mudanças climáticas e desastres. Atualmente, dedica-se ao Observatório Latino-Americano sobre Mobilidade Humana, Mudança Climática e Desastres (MOVE-LAM), iniciativa que tem como objetivo ampliar a compreensão do fenômeno da migração ambiental na América Latina.

A estudiosa fala sobre os motivos pelos quais decidiu dedicar-se a lutar pela questão ambiental e a estudar mais sobre ela. Um episódio, em particular, tocou-lhe pessoalmente. “Sempre gostei muito de duas áreas: a ambiental e a do direito internacional”, diz Erika. “Um dia, quando estava em casa, assisti a uma reportagem sobre o furacão Katrina (Estados Unidos, 2005), e vi que poderia fazer essa conexão entre mudanças climáticas, ou grandes crises ambientais, e a proteção de direitos humanos dessas pessoas que são afetadas por essas crises”, diz a doutora. 

Seguindo sua luta, Erika tornou-se co-fundadora da RESAMA. A pesquisadora conta sobre como foi a fundação: quando apresentava-se em um evento internacional em 2010, uma colega do Uruguai chamou-a para conversar sobre a necessidade de dar visibilidade à questão das migrações ambientais. “Decidimos criar essa rede, lembro que estávamos em um café em Montevidéu”. Ela explica como acontece a introdução do tema nas agendas públicas da região: “Acreditamos que é preciso ter um olhar integral, o tema é transdisciplinar, é preciso introduzir a migração nas agendas climáticas e o clima nas agendas de migração, além de introduzir o deslocamento nas agendas que se relacionem a essa temática: ambientais, de desastres, urbana”, diz a pesquisadora, mencionando exemplos do trabalho da RESAMA, como a participação na discussão da nova Lei De Migração e do Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas no Brasil, o qual prevê que a migração pode ser considerada uma estratégia de adaptação à mudança climática.

Larissa Corrêa, estudante e voluntária do Greenpeace / Imagem: Acervo pessoal

Larissa Corrêa é graduanda de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e voluntária do Greenpeace e do The Climate Reality Brasil. Em 2019, publicou na revista digital Portal de Direito Internacional Sem Fronteiras o artigo ”Queimadas na Amazônia”, no qual traz uma análise do tema sob o aspecto do direito internacional público ambiental. 

A estudante também comenta suas motivações: “O que começou a me motivar a ter interesse pela questão ambiental foi minha relação com os animais, pelos quais tenho um carinho e uma empatia muito grande”, diz. “A questão ambiental está muito gritante, estão acontecendo muitas coisas no mundo que afetam muitos animais, espécies, pessoas e, quando eu leio sobre isso, vejo o quanto ela é gritante. Por isso, decidi fazer alguma coisa, fazer minha parte”, explica.

Larissa fala sobre seu trabalho nas ONGs em que é voluntária,  Greenpeace e  The Climate Reality Brasil. Na primeira, ela auxilia na produção de conteúdo educativo, sobretudo para as redes sociais; na segunda, dentre suas atividades, está o projeto Escola Pelo Clima, ainda em desenvolvimento, o qual busca propor às escolas uma forma de abordar a questão climática com as crianças.

A vontade de aprender ainda mais levou a estudante a escrever seu trabalho publicado sobre as queimadas na Amazônia com sua prima, Rayana Suellen Corrêa. “Queríamos escrever sobre um tema atual e necessário, pelo qual tínhamos interesse e com o qual poderíamos aprender bastante”, diz. 

Pantanal: a gravidade da situação e suas repercussões internacionais

Ambas as entrevistadas levantaram suas considerações sobre a gravidade da situação no Pantanal. Larissa, inclusive, relacionou-a com sua pesquisa: “A Amazônia é importante por vários pontos, não só por sua fauna, mas também pelas chuvas, a hidrologia e outros impactos que ela gera no clima: e o Pantanal também tem uma importância muito forte. Esses grandes biomas afetam muitas áreas”, comenta. “As queimadas não têm um impacto só na fauna e na flora da região, mas na sociedade em geral, são biomas grandes e importantes”.

Larissa destacou, também, a repercussão internacional negativa que uma política ambiental deficitária pode gerar para o país, e as consequências disso. “A repercussão internacional pode ser bem ruim e, agora que Joe Biden foi eleito, ela pode piorar ainda mais se o Brasil não tomar medidas em relação a isso”, pontua, ressaltando que Biden já levantou a discussão da necessidade da preservação ambiental no Brasil.  “Chegamos em um ponto em que o mundo precisa se preocupar com a questão ambiental, e o governo está ignorando isso, não está colocando limites”, completa. “O Brasil pode sofrer sanções econômicas. A partir do momento em que a União Europeia questionou-se se fechava ou não um acordo com o Mercosul, isso já era uma evidência, porque o acordo seria bom economicamente para o Brasil”.  

Migração ambiental: os deslocamentos forçados

Erika ressaltou, também, a importância da discussão sobre o bioma e sobre o problema dos deslocamentos por questões ambientais. Ela lembra a história de um senhor que conheceu e que, depois de 80 anos vivendo na região, teve de sair da sua casa. “Isso só vem se agravando. Aldeias indígenas foram evacuadas. É preciso ver essa questão, conversar com fontes locais, ter uma visão mais ampla”, diz. “Compreender o viés ambiental é fundamental, mas também é necessário ver outros fatores relacionados”, completa a pesquisadora, que considera o migrante ambiental como aquela pessoa que não teria saído de sua casa se não houvesse aquele episódio de desastre ambiental (no caso, as queimadas).

Um ponto crucial em relação à migração ambiental é o de que não há, no direito internacional, um reconhecimento específico para os refugiados climáticos. O principal documento que trata das definições, direitos e deveres dos refugiados, a  Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) da Organização das Nações Unidas (Acnur), concluída em Genebra (Suíça), não aborda esse tipo de deslocamento forçado. 

Erika reforça que não existe nenhuma terminologia oficial ou categoria prevista em convenção internacional. “As organizações internacionais rejeitam o termo com o argumento de que não seria possível uma revisão da convenção relativa, de que essa convenção se aplica em um contexto bastante diferente e que, se houvesse uma revisão, ela poderia fragilizar esse sistema já consolidado”, diz. “Dependeria de cada Estado querer ampliar sua definição [de refugiado], mas isso não é um movimento que se nota”. 

E as consequência são sérias. Na opinião da pesquisadora, “a falta de reconhecimento gera graves violações de direitos humanos”. Ela explica: “A ausência de um reconhecimento jurídico dificulta a produção de dados e gera distintas invisibilidades: a legal, a política, a da dificuldade do acesso a políticas públicas”.

A necessidade do olhar multidimensional

Quando abordamos a questão ambiental e a dos deslocamentos forçados, é indispensável compreender a multidimensionalidade do problema. “É importante entender que a questão ambiental e climática deve ser vista de um ponto de vista sistêmico. Isso significa que ela nunca vem isolada: por isso, é um tema que precisa ser tratado em múltiplas agendas”, diz Erika. “Há uma dificuldade na vinculação direta entre a mudança do clima e a mobilidade humana. Boa parte do discurso sobre a complexidade da migração climática reside nessa dificuldade de estabelecer este vínculo”. A pesquisadora completa: “A mudança climática é um multiplicador de ameaças. Ela multiplica vulnerabilidades pré-existentes, e o fator ambiental interage com condições socioeconômicas, políticas, culturais, institucionais; e é uma variável que precisa ser introduzida nas políticas de uma forma geral”.

Na opinião da especialista, entender esse multidimensionalismo e pensar em uma abordagem de múltiplas agendas é um passo importante. “O impacto da mudança do clima acontece de forma mais forte em lugares que têm baixa capacidade de resposta, territórios já fragilizados: olhando através do aspecto multidimensional, percebemos que estamos lidando com justiça territorial, fortalecimento de capacidade de resposta no território”, diz. “Se passarmos a olhar a questão climática com uma lente mais ampla, conseguiremos contribuir no enfrentamento das mudanças e suas consequências”. 

Para completar, Erika menciona a importância do fator humano. “A dimensão humana está subdimensionada nas pesquisas, nos estudos, na participação das comunidades nos processos de tomada de decisão e de formulação de políticas”. Ela explica: “Não dá para formular políticas para um grupo sem entender como é seu funcionamento, que necessidades ele tem”. 

O papel do jornalismo

O jornalismo possui um papel essencial para levantar a necessidade da discussão sobre as mudanças climáticas. Erika destacou, em sua entrevista, abordagens e ferramentas essenciais para a produção de conteúdos de qualidade sobre o tema. 

Em primeiro lugar, a pesquisadora destacou a necessidade de aproximar o tema da população como um todo e tornar as pessoas protagonistas de suas próprias histórias. “Precisamos sentir que o problema é real, que há pessoas que já estão enfrentando a mudança do clima, pessoas que têm uma história e que não são personagens, e sim protagonistas”, diz. Ela explica: “As pessoas têm o conhecimento para contribuir, já que muitas vezes conhecem o território melhor do que as próprias autoridades, e é necessário ter esse olhar sobre as pessoas que serão beneficiárias de políticas não só como assistidos, mas como participantes, e o jornalismo tem essa finalidade de trazer essa realidade para perto, ser esse aliado”, diz.

Erika ressalta que é necessário contemplar os distintos atores e narrativas, não só aqueles que estão no alto nível de tomada de decisão, bem como dar atenção a estórias e culturas locais. A especialista também aponta o problema do jornalismo como aliado presente apenas em situação de urgência: “O jornalismo de massa está prestando atenção ao tema agora de forma mais geral, e existe um movimento de contar histórias, mas vejo muito a sensação de emergência”. Ela discorre: “Há pessoas que estão nessas condições que ficam completamente abandonadas quando a emergência passa”. 

Ela conclui afirmando que a migração climática não é passageira e que é muito importante que o jornalismo esteja atento ao abandono dessas pessoas, já que a invisibilidade continua ou acontece depois da emergência e talvez de forma pior, pois a imprensa não seria mais uma aliada.

Confira as dicas das entrevistadas para mobilizar-se sobre o tema

Ambas as estudiosas reconhecem a seriedade da questão ambiental, e dão dicas para quem quer ajudar mas não sabe por onde começar.

Para Larissa, democratizar a informação e buscar conhecimento são passos essenciais na mobilização pelo tema. “O impacto dos problemas ambientais afeta a todos. Essa situação é gritante e mudanças são necessárias, mas acredito que só haverão mudanças quando conseguirmos democratizar as informações e pararmos de ver a questão ambiental como algo no futuro”, diz. Ela ressalta a importância de ler sobre o assunto, ver filmes, documentários, informar-se sobre a gravidade do problema. Buscar ONGs e aprender com elas também é uma boa iniciativa.

Para Erika, outro ponto essencial é conhecer sua própria realidade. “Muitas vezes, temos um fenômeno acontecendo na porta da nossa casa, mas não temos aquele despertar para ele. Muitas vezes não sabemos o que acontece no nosso próprio estado. Você pode avaliar se sente mais calor, se as chuvas estão impactando sua cidade. Temos que conhecer mais esses fenômenos e desnaturalizá-los”. Ela complementa: “É necessário conhecer melhor as histórias, apoiar causas e lutas. Existem associações de moradores e lideranças que estão apoiando pessoas nessa situação, mas eles precisam de aliados para suas lutas”.

Por Thais Navarro / thaisnavarro@usp.br