30 anos de saúde universal gratuita no Brasil

O Sistema Único de Saúde (SUS) completou 30 anos, no dia 19 de setembro de 2020, em meio à pandemia de Coronavírus. Apesar de estar previsto na Constituição Federal de 1988, o sistema só foi regulamentado em 1990, e desde então fornece atendimento universal em todo o território nacional.

Vice-campeão mundial em mortes pelo COVID-19, e com 70% dos brasileiros dependentes exclusivamente do serviço público de saúde, o Brasil contou com a atuação do SUS para lidar com a complexidade da pandemia. Oswaldo Tanaka, diretor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ressaltou, em entrevista à CNN, a importância do sistema nesse contexto: “Acredito plenamente que o SUS foi essencial para o Brasil. Se não o tivéssemos, em um país de 200 milhões de habitantes, com essa extensão, haveria muito mais mortes.”

Outros especialistas, porém, destacam os problemas anteriores ao COVID, evidenciados pela pandemia. Falando à Agência Brasil, o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Eduardo Fernandes classificou a resposta do SUS como “de razoável para boa”, com muitos hospitais sendo reequipados e equipes médicas reforçadas. Mas, relembrou as consequências dos cortes destinados à atenção básica nos últimos anos: “Nesse período de pandemia, os profissionais estariam mais preparados para dar o primeiro atendimento e uma filtragem correta desses casos, não haveria necessidade dessa ida em massa para os serviços hospitalares.”

Privatização é opção?

Em outubro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto 10.530, que liberava estudos para a inclusão das Unidades Básicas de Saúde no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. A ideia foi mal recebida, tanto nas redes sociais, quanto por autoridades oficiais. 

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto declarou: “Estamos nos posicionando perante toda população brasileira como sempre nos posicionamos: contra qualquer tipo de privatização, retirada de direitos e fragilização do SUS.”

Em entrevista ao jornal O Globo, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que representa os secretários estaduais, Carlos Eduardo Lula, foi ainda mais crítico: “É uma loucura ter um decreto do Ministério da Economia para falar sobre atenção primária. É muito esquisito esse modelo, porque parece ser uma PPP (parceria público-privada), mas não deixa claro. Essa PPP só tem sentido em grandes obras e não em pequenas obras como é o caso de uma UBS. A UBS em tese não é lucrativa para gerar investimento por parte da empresa para fazer isso.”

No dia seguinte, após a repercussão negativa, Bolsonaro revogou o decreto. O debate sobre privatização do SUS, entretanto, é antigo e volta a ser discutido de tempos em tempos. As propostas, em geral, nascem como resposta às filas para consultas agendadas, à falta de pessoal e de recursos, e ao investimento público que o sistema demanda, sem lucro monetário em retorno. Os especialistas costumam se posicionar como nesta última ocasião: são fortemente contrários. O Professor de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Álvaro Guedes pontua em entrevista à GauchaZH: “É preciso cuidado, porque é inconstitucional privatizar a saúde pública.”

Saúde antes do SUS

Antes da colonização portuguesa, os únicos tratamentos disponíveis no território brasileiro eram provenientes da medicina indígena. Através do íntimo conhecimento da fauna e da flora local, os habitantes originais do país desenvolveram medicamentos e cuidados que são utilizados até hoje: do boldo contra a prisão de ventre, até o abacaxi como diurético. “Nossas concepções de saúde e doença passam por outra lógica. E nossas técnicas são muito mais voltadas a partir da consideração de que o corpo é afetado por uma rede de relações com a água, a floresta e o ar”, explica João Paulo Tukano, indígena da etnia tukano, em entrevista ao National Geographic Brasil.

Já enquanto o Brasil foi Colônia e Império de Portugal, não existiu nenhum esforço para desenvolver um sistema de saúde, ou qualquer estruturação de políticas públicas na área. Os nobres e ricos tinham quase todo o acesso aos médicos estrangeiros que residiam no país. Somente com a transferência da Corte, em 1808, foram criados os primeiros cursos de medicina locais. A outra opção de atendimento era o trabalho das Santas Casas de Misericórdia. Pautadas em preceitos religiosos de caridade e filantropia, foram durante muito tempo a alternativa que restava aos pobres. 

Após a Independência, em um cenário de constantes surtos de doenças como febre amarela e varíola, são tomadas as primeiras medidas governamentais visando avançar a saúde brasileira, com a criação de um órgão de vistoria da higiene pública. O principal objetivo era estruturar o saneamento básico no país – o que continua a ser um desafio até hoje.

Durante a República, continuaram a ser feitas reformas sanitárias, em especial nos centros urbanos. Os sanitaristas foram responsáveis pelas campanhas de saúde no período, mas suas abordagens não foram sempre bem recebidas. A Revolta da Vacina, em 1904, marca a resistência da população em aderir à vacinação obrigatória, sem a realização de um trabalho que buscasse educar e informar sobre a nova tecnologia para prevenção de doenças. Foi somente nos anos 1920 que surgiu pela primeira vez uma organização de saúde que buscava dar alguma segurança e proteção aos brasileiros: as Caixas de Aposentadoria e Pensão foram criadas pelos trabalhadores para trazer assistência na velhice e doença. Mais tarde, Getúlio Vargas ampliaria a ação das Caixas para outras profissões, criando o Instituto de Aposentadorias e Pensões. Esses foram os primeiros modelos que viriam a originar o que hoje conhecemos como Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Vargas também criou, na Constituição de 1934, novos direitos de saúde para os trabalhadores, como a licença maternidade e o direito à assistência médica. A Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, trouxe ainda mais benefícios de saúde para trabalhadores de carteira assinada. Somente em 1953, foi criado o Ministério da Saúde. Pela primeira vez havia um órgão dedicado unicamente às políticas públicas de saúde.

Primeiros passos para a universalização

As Conferências Nacionais de Saúde vinham acontecendo desde 1941, e eram eventos de discussão e avaliação das políticas públicas de saúde no país. Na terceira edição, em 1963, foram propostos pela primeira vez conceitos-chave do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS): “Duas bandeiras dessa conferência: um sistema de saúde para todos (saúde direito de todos os cidadãos) e organizado descentralizadamente (protagonismo do município)”, aponta o doutor em saúde pública Gilson Carvalho – um dos idealizadores do SUS – em um trabalho para a Revista de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Mas a instauração da Ditadura Militar, em 1964, adormeceu essas ideias.

Os 21 anos seguintes, se passaram com corte de verbas da saúde e surtos de doenças como dengue e meningite. Com esse cenário, foram avançando entre profissionais de saúde, intelectuais e partidos políticos, os conceitos sanitaristas: uma visão mais social, que considerava que a saúde ia além do bem-estar corporal. Nas faculdades e escolas de saúde, eram testados conceitos como saúde comunitária, clínica de família e pesquisas comunitárias, que viriam a ser muito importantes no SUS. Somente com o fim da Ditadura, as propostas desse movimento foram reunidas em um documento enviado ao Legislativo, e levaram à realização da 8ª Conferência Nacional da Saúde, em 1986.

A conferência ficou marcada na história, por trazer o tema “saúde como direito de todos e dever do Estado” e esboçar o surgimento do SUS. As principais resoluções foram incorporadas à Constituição Federal de 1988 e, em 1990, as leis 8.080 e 8.142, regulamentam o Sistema Único de Saúde. À CNN, o diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), Oswaldo Tanaka, resumiu: “A Constituição que criou o Estado de direito neste país diz que a saúde é direito do cidadão e dever do Estado. Todo cidadão tem direito à saúde, independente de raça, cor ou capacidade de ganhar dinheiro. Acho que a sua leitura depende de, do ponto de vista de cidadão, você achar que alguns podem ter direitos e outros não. Se eu acredito em democracia, acho que todos têm direitos iguais.”

Quais os princípios do SUS?

O Sistema Único de Saúde foi concebido a partir de alguns conceitos, que podem ser divididos entre doutrinários e organizativos. Os princípios doutrinários tratam dos ideais do Sistema, e são o ponto de partida para que sejam pensadas as ações. Já os organizativos tratam das formas de pôr em prática esses ideais.

Entre os princípios doutrinários está a universalidade, ou a garantia de que o serviço deve ser acessível a todos os cidadãos, sem discriminação. “Nós temos alguns outros princípios, como a integralidade: todas as pessoas devem ser atendidas desde a necessidade básica, até as mais complexas. Um outro princípio doutrinário é que toda pessoa é igual perante o SUS e que trataremos de forma desigual os desiguais”, explica Ana Brito, epidemiologista e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e professora da Universidade de Pernambuco (UPE), em entrevista ao Ecoa UOL

Já os princípios organizativos asseguram: a participação popular, nos Conselhos e nas Conferências de Saúde, onde as políticas públicas da área são avaliadas e discutidas; a descentralização e o comando único, que distribuem poderes e responsabilidades entre município, estado e federação e também asseguram soberania a cada um deles para a gestão desses recursos; e a regionalização e hierarquização, com a organização dos serviços de saúde em níveis crescentes de complexidade em cada região.

Entenda a estrutura de funcionamento do SUS

A partir desses conceitos-chave, o SUS divide os serviços de saúde entre atenção básica, onde são realizados os trabalhos de promoção, prevenção e recuperação, como vacinas e consultas; atenção secundária, onde há alguma doença identificada e existe tratamento especializado; atenção terciária, para pacientes que precisam de internação por apresentarem um quadro grave; e reabilitação, para pacientes que precisam de acompanhamento posterior à alta.

Com isso, as unidades de atendimento de saúde ficam definidas de acordo com os atendimentos esperados. Os Postos de Saúde são pensados para atender a população de uma região, contando com profissionais da saúde como enfermeiros e auxiliares. Já as Unidades Básicas de Saúde, são destinadas à atenção básica, com a assistência de enfermeiros, médicos generalistas ou especialistas de áreas fundamentais. Ainda se tratando de atenção primária, o SUS oferece também os serviços de mais de 260 mil Agentes Comunitários de Saúde, que visitam as casas de diferentes regiões para orientar os cidadãos quanto à necessidade de marcação de consultas e acesso a medicamentos.

Para casos de urgência e emergência, existem as Unidades de Pronto Atendimento (UPA), que contam com mais recursos para atender serviços de média e alta complexidade, 24 horas por dia. Em casos de atenção terciária, quando há necessidade de internação, o Hospital realiza o atendimento.Entre outros serviços da rede de atendimento do SUS estão os hemocentros, os laboratórios para realização de exames e os institutos de pesquisa. Também são oferecidos serviços nas farmácias, pelo Programa Farmácia Popular, que distribui medicamentos essenciais, e nos Serviços de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que realiza o atendimento pré-hospitalar em situações de urgência e emergência.

Por Rebecca Gompertz / rebecca.gompertz@usp.br