Se nada mudar, Pantanal voltará a queimar em 2021

Um grito entre as cinzas. Cinzas. É o que restou do Pantanal após o ano de 2020, que registrou o maior número de incêndios da história do bioma. Segundo dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LASA-UFRJ), 4,3 milhões de hectares foram queimados este ano, o equivalente a 29% do bioma no território brasileiro. Os dados foram coletados entre 1 de janeiro a 15 de novembro de 2020. E o ano ainda não acabou. Esse número ainda será maior – e mais chocante. Para Gustavo Figueirôa, biólogo e responsável pela comunicação da organização não-governamental S.O.S Pantanal, é fato que o Pantanal vai voltar a queimar em 2021.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, realizou estudos sobre a seca e queimadas no Pantanal brasileiro, e estimou que a seca seja a mais intensa dos últimos 60 anos, conforme dados retirados da plataforma SPEI Global do “Global Drought Monitor”. Com o aquecimento global, a tendência é que os períodos de estiagem aumentem em 2021. 

A seca é um dos principais motivos que justifica os incêndios no bioma, mas não é o único. A ferramenta interativa de monitoramento do Instituto Centro de Vida (ICV) mostra que, em 24 de dezembro de 2020, enquanto esse texto é escrito, existem cerca de 15.544 focos de calor ativos no Pantanal. De acordo com Figueirôa, pelo menos 90% deles são causados por ação humana, seja intencional ou não. “A seca somada à ação humana foram responsáveis pelos piores incêndios da história”, afirma o biólogo.

“[As causas] podem ser desde uma fogueira que foi esquecida acesa, o vento bateu e levou uma fagulha para o mato até o indivíduo que coloca fogo por querer”, diz. “Se alguém que quer realizar a limpeza do pasto com fogo, que é permitido em algumas épocas do ano, mas faz isso em uma época que ele não tem autorização, uma época em que está seco demais, a pessoa perde o controle do fogo e acaba virando um incêndio monstruoso”, explica Figueirôa. “Eu tinha passado por essa região toda que pegou fogo há exatamente um ano atrás e ver isso completamente destruído… foi um cenário muito diferente, porque estava tudo muito seco, tudo muito cinza, muita fumaça, você não conseguia nem ver o horizonte. Foi bem devastador, foi feio de ver”, relata. O Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense teve mais 72% da área consumida pelas chamas.

Em meio às cinzas, o grito. O grito da fauna, dos animais que morreram aos montes por causa do fogo que se alastrou. “Muitos animais perderam a vida. Alguns conseguiram fugir e voltaram para a área, que já estava queimada, e encontraram um grande deserto cinza, sem alimento, sem recurso para sobreviver”, conta o membro da S.O.S Pantanal. Essa é a história por trás da icônica foto da carcaça queimada de um jacaré, tirada pelo fotógrafo Dida Sampaio para o jornal O Estado de S. Paulo, em setembro de 2020.

Setembro foi o pior mês da história para o bioma. Com número recorde, foram registrados 8.106 focos de calor no mês, segundo o levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Pelo ambiente e pela forma que estamos encontrando hoje, e o fogo já ter passado aqui por volta de uns 30 a 20 dias, o desenho que se tem é que o jacaré veio buscar refúgio em um ambiente que ele conhecia, uma área alagada. Então, ele, fugindo do fogo, que veio de costas, encontrou aqui uma área já queimada também e foi surpreendido pelo fogo”, explica Ilvânio Martins da ONG Ecotrópica para a reportagem do Estadão.

ONGs e outros atores sociais se tornam protagonistas

Amanaci, uma onça pintada, foi outra vítima dos incêndios. Por sorte e pelo trabalho do Instituto de Preservação e Defesa dos Felídeos da Fauna Silvestre do Brasil em Processo de Extinção (NEX), ela não foi uma vítima fatal. O felino está há 73 dias sob os cuidados do instituto, desde que chegou do Pantanal em 17 de agosto. Ela foi resgatada dos incêndios, com ferimentos e queimaduras graves, de terceiro para quarto grau, exposição óssea e morte dos tendões das quatro patas. Segundo o Instituto, foram 34 sedações. Após 24 dias de luta, o Ousado, outra onça salva pelo NEX, foi solto na região de Porto Jofre, em Poconé (MT). O instituto percorreu cerca de 1,2 mil quilômetros em barco, helicóptero e carro para trazer a onça para propriedade rural no município de Corumbá de Goiás. Ousado tinha queimaduras nas duas patas, foi tratada pela equipe do NEX e voltou para o seu habitat natural. 

O impacto na fauna foi muito grande, mas ainda não há dados suficientes para saber a real extensão do problema. Fato é que as entidades foram as responsáveis para que os danos não fossem maiores. “As ações emergenciais foram tomadas agora, muitas organizações foram para a linha de frente para resgatar os animais, para levar água e alimento, para combater o fogo, mas o pantanal vai voltar a queimar no ano que vem e a gente precisa estar preparado, com um plano estruturado para evitar que esse desastre tome essa proporção de novo”, argumenta Figueirôa.

Ele explica as ações que a S.O.S Pantanal realizou e as que pretende realizar para que o cenário de 2020 não se repita. “A organização está realizando algumas ações tanto de apoio emergencial à fauna e às comunidades quanto ações de restauração de algumas áreas degradadas com replantio de mudas nativas”, diz o biólogo. “Mas, principalmente, o nosso carro-chefe é a criação e estruturação de brigadas rurais voluntárias, espalhadas por todo o bioma. A estruturação consiste no treinamento, doação de equipamentos adequados para o combate e integração com o corpo de bombeiros, para que as ações sejam ordenadas e eficientes, dando maior segurança para os brigadistas e mais agilidade ao combate às chamas.”

Artistas como Luan Santana, nascido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, estado coberto pelo Pantanal, decidiu usar a sua voz para fazer algo em relação à situação. O sertanejo procurou a S.O.S Pantanal para oferecer sua ajuda. Juntos, eles e o movimento União BR criaram “O Pantanal Chama”, projeto que busca arrecadar fundos para construção das brigadas de incêndio e para repasse a instituições parceiras. “O Pantanal Chama” já arrecadou 1 milhão de reais entre doações e dinheiros obtidos pelos streams da nova música do Luan Santana, “Um Grito Entre As Chamas”, e a live realizada pelo cantor.

E o Ministério do Meio Ambiente, por onde anda?

Em relação a ações do governo federal, pouco se vê resultado. Medidas como a moratória do fogo, que proibiu em julho queimadas na Amazônia por 120 dias, não surtiu efeito nos números, pois não há fiscalização ou aplicação de multa para quem descumpre o decreto. Segundo Figueirôa, o diálogo com o governo federal é nulo. O diálogo acontece por intermédio de autarquias, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No entanto, as autarquias passam por crises envolvendo falta de servidores e de recursos. Um levantamento realizado pelo site Metrópoles mostra que o Ibama e o ICMBio perderam 2,8 mil servidores nos últimos 10 anos. 

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) minimiza e, na maioria das vezes, até nega os incêndios que atingem o Pantanal e a Amazônia. Em conversa com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada no último dia 24, o presidente defendeu o boi-bombeiro como solução para os problemas. “Fogo lá no Pantanal. No passado, a gente podia deixar o boi comer o capim acumulado, agora não pode mais. Então, acumula uma massa vegetal morta muito grande e, quando vem o fogo, incendeia e o negócio é uma barbaridade. É o boi-bombeiro”, sugeriu Bolsonaro.

“Estamos vendo alguns focos de incêndio acontecendo no Brasil. Isso acontece ao longo de anos. Porque obviamente: quanto mais nos atacarem, melhor interessa aos nossos concorrentes para aquilo que temos de melhor, que é o agronegócio. Países outros que nos criticam não têm problema de queimadas porque já queimaram tudo no seu país”, disse o presidente em setembro. O Brasil vem sendo alvo de críticas de chefes de outros países como o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente da França, Emmanuel Macron. “Começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia”, prometeu Biden em debate. “Aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas”, detalhou.

O Ministério do Meio Ambiente também não tem sido o protagonista no combate aos incêndios e ao desmatamento no país. “Apenas 6% do Pantanal são de jurisdição da fiscalização federal. As demais partes do território são de competência estadual. Portanto, o governo federal contribui em sua parcela de jurisdição”, disse o ministro Ricardo Salles, tentando livrar a pasta da responsabilidade sobre os incêndios. O vice-presidente Hamilton Mourão tomou as rédeas da situação na Amazônia e assumiu o comando da Operação Verde Brasil 2. A operação faz parte da Lei da Garantia e da Ordem (GLO) e tem atuação das  Forças Armadas. A presença de militares no lugar de especialistas é algo recorrente no governo Bolsonaro. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem provocado um desmantelamento do Ibama ao nomear militares para cargos. O Tribunal de Contas da União (TCU) considerou ilegal as nomeações feitas por Salles por desrespeitarem critérios mínimos de experiências profissional e acadêmica previstos por lei.

De acordo com dados oficiais do Portal da Transparência compilados pelo DW Brasil, o gasto esperado com a contratação de brigadistas por tempo determinado reduziu  58%: caiu de R$ 23,78 milhões em 2019 para R$ 9,99 milhões neste ano. Enquanto o governo continuar tirando recursos, corpo técnico dos órgãos e continuar minimizando os efeitos devastadores dos incêndios; enquanto não houver fiscalização e multa; enquanto o aquecimento global continuar mudando o clima, diminuindo a seca; enquanto o agronegócio for mais importante do que o meio ambiente, a natureza corre perigo. Se nada mudar, o pantanal vai voltar a queimar em 2021.

Por Júlia Vieira / juliavcamargo@usp.br