Studio Ghibli chega ao streaming: por onde começar a ver?

Em fevereiro deste ano, o Studio Ghibli disponibilizou a grande maioria de seus filmes no serviço de streaming Netflix. O estúdio é uma referência no ramo da animação, responsável por clássicos como Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) e Cemitério dos Vagalumes (Hotaru no Haka, 1988). Suas produções são reconhecidas também no Ocidente, tendo A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001) recebido o Oscar de Melhor Animação em 2003. A Academia também indicou Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, 2014), O Conto da Princesa Kaguya (Kaguya-hime no Monogatari, 2013) e A Tartaruga Vermelha (Reddotatoru Aru Shima no Monogatari, 2017) para a mesma categoria em outros anos.

Ao todo, foram disponibilizados vinte e um longa-metragens entre fevereiro e abril. A novidade surpreendeu os fãs, já que sempre foi muito difícil encontrar os filmes do Ghibli tanto nas mídias digitais quanto nas físicas – os lançamentos em DVD eram limitados e esgotavam muito rapidamente. Até este ano, os filmes menos populares, como Sussurros do Coração (Mimi wo Sumaseba, 1995) e Contos de Terramar (Gedo Senki, 2006) só podiam ser vistos de forma pirateada, já que não foram lançados no Brasil.

Em entrevista ao jornal Sora 24 News, Toshio Suzuki, co-fundador e produtor de quase todos os filmes do estúdio, revelou que a decisão foi, principalmente, financeira: “Hayao Miyazaki está atualmente fazendo um filme, mas está demorando bastante. Quando isso acontece, é normal que requeira uma boa quantia de dinheiro também. Eu disse a ele que isto poderia cobrir os custos da produção de seu filme. Quando eu disse isso, ele respondeu ‘Bom, então não há nada que eu possa fazer’”.

A medida foi, é claro, muito bem recebida pelos fãs. Embora o serviço de streaming não divulgue os acessos aos filmes, o Studio Ghibli esteve por dias nos assuntos mais comentados nas redes sociais, além de vários sites de cultura terem produzido resenhas sobre as produções. A seguir, conheceremos alguns dos incríveis filmes Ghibli, cujo catálogo oferece opções para todos os gostos – para quem já é aficcionado pelas animações japonesas, para quem não conhece nada, para crianças de todas as idades. O estúdio existe há 35 anos e conquista todos que o conhecem – e com certeza algum dos seus filmes irá te conquistar também.

Se você nunca viu um filme de Hayao Miyazaki

Um bom começo para quem nunca teve contato com os filmes de um dos mais importantes diretores japoneses é Vidas Ao Vento. A história tem como pano de fundo a 2ª Guerra Mundial, tornando-se mais facilmente compreendida pelo público ocidental. Mas não se engane – como todo filme do Ghibli, Vidas Ao Vento tem várias camadas.

O longa é baseado na vida de Jiro Horikoshi, um importante engenheiro japonês que projetou aviões para o exército, impulsionando a expansão japonesa durante a 2ª GM. No filme, conhecemos Jiro ainda criança, sonhando em voar. Já mais velho, ele se divide entre dois amores, os aviões e a cativante Naoko, que tem um papel importante na caminhada de Jiro.

A primeira imagem é uma tela azul com o verso “o vento se ergue, devemos tentar viver”, do poeta francês Paul Valery (1871-1945), e é uma boa forma de entender a tônica do filme: uma poesia em forma de cinema. Como grande parte dos filmes do Ghibli, Vidas ao Vento é um filme lento. E isso é proposital: as cenas de paisagens que se estendem minutos a fio são um convite à reflexão durante a história, um respiro em meio aos acontecimentos. O espectador ocidental pode estar acostumado ao ritmo frenético de Hollywood, mas a proposta contemplativa de Miyazaki merece atenção.

Foto: Studio Ghibli / reprodução

A temática dos aviões é marcante nesse filme, mas é recorrente em vários outros do estúdio. O pai de Hayao Miyazaki era dono de uma empresa que produzia aviões militares durante a 2ª GM, tornando o cineasta um aficcionado pelo aeromodelismo. Com as atrocidades cometidas pelo Japão Imperial e a visibilidade do ataque a Pearl Harbor, Miyazaki, que era muito pequeno na época da guerra, cresceu com uma visão pacifista que permeia toda sua obra. Os aviões participam das mensagens de paz de seus filmes com a ideia de que a responsabilidade pelas catástrofes não é das máquinas, mas sim de quem as fabrica – os homens. Vidas ao Vento tem nos aviões o tema central do filme, ilustrando o fascínio de Miyazaki pelas engenhocas voadoras e sua busca por entender o significado do trabalho da família durante a guerra.

Em meio a uma história de guerra, outra trama também recorrente nos filmes Ghibli cativa os espectadores: um bom e velho romance. No caso, Jiro é apaixonado por Naoko, uma mulher gentil que descobre uma tuberculose. Ela precisa se afastar da cidade para tratar a doença, mas Jiro está trabalhando para o exército e tem prazos a cumprir. Os momentos dos dois juntos no campo, que estampam a maior parte do material de divulgação do filme, são os mais bonitos de toda a história.

Vidas ao Vento não é o maior trabalho de Miyazaki – apesar de ter sido indicado ao Oscar, dificilmente entraria no Top 5 de algum fã do estúdio. Mesmo assim, é um ótimo primeiro passo para o universo do Ghibli, por apresentar tanto os traços característicos do estúdio quanto um contexto mais palatável para o novo espectador.

Para apresentar o Ghibli às crianças

O grande clássico do estúdio é, sem dúvida, Meu Amigo Totoro. O filme que apresenta o personagem símbolo do Ghibli é uma animação sensível e delicada. As protagonistas são as irmãs Mei e Satsuki, que se mudam com o pai para uma casa no campo por causa de sua mãe, que está internada em um hospital próximo. Enquanto Satsuki vai para a escola, Mei passa os dias entediada no jardim, até descobrir uma passagem que a leva para conhecer os espíritos da floresta.

Foto: Studio Ghibli / reprodução

Totoro está para o Japão como o Mickey está para os Estados Unidos. É um dos personagens mais frequentes em produtos infantis e conhecido pela maioria dos japoneses. O filme é doce e, ao mesmo tempo, não subestima a inteligência das crianças. O tempo todo as protagonistas temem pela vida da mãe, e a narrativa trata o sentimento com dignidade e o peso que merece, sem jamais diminuí-lo por vir de meninas de cinco e oito anos. 

A relação familiar entre Satsuki, Mei e o pai delas é muito bonita e serve para quebrar a ideia de que “os japoneses são distantes e frios”, pois o pai cuida muito das meninas. Na verdade, todo o pano de fundo do filme é muito bom para apresentar o espectador ao modo de pensar e viver do Japão. A arquitetura das casas, as comidas e o jeito como as personagens se relacionam apresentam o interior de um Japão em recuperação no pós-guerra, um cotidiano que aos poucos estava voltando à normalidade. Ao contrário de muitos outros filmes de Miyazaki, a guerra em si não é mencionada nesse filme, mas a ambientação é em uma aldeia bem simples e cheia de plantações.

Outro filme muito bom para crianças é Ponyo: uma amizade que veio do mar (Gake no ue no Ponyo, 2008). Livremente inspirado na Pequena Sereia, a história apresenta Ponyo, uma peixinha filha de um cientista e da deusa das águas. Ela se encanta por Sosuke, um garoto de cinco anos, e se torna humana para ser amiga dele. Mas a poção que ela usa para isso acaba criando um grande desequilíbrio e colocando todo o vilarejo em risco.

Foto: Studio Ghibli / reprodução

Enquanto Ponyo nos mostra um mundo mágico de deusas e milhares de invenções geniais, Sosuke é o retrato da infância no Japão Imperial: vive sozinho com a mãe, pois o pai, militar, foi lutar na guerra. Uma das cenas mais tocantes do filme é quando o navio passa pelo mar do vilarejo, e pai e filho se comunicam por código-morse. A mãe, que se sente muito sozinha, fica animada com a chegada de Ponyo e a acolhe calorosamente. A relação de cuidado que cria com a menina é linda de acompanhar. A história é relativamente simples, fácil para as crianças acompanharem.

Para quem já gosta de animes

Chamando todos os fãs de One Piece, Death Note, Naruto, Full Metal Alchemist e todos os animes famosos! Se você já se descobriu fã de anime e não viu Studio Ghibli, a sugestão é começar por O Castelo Animado (Hauru no Ugoku Shiro, 2004). Baseado no livro homônimo de Dianna Wynne Jones (mas muito melhor), o filme fala sobre Sophie, uma jovem chapeleira de vida pacata que cruza com a Bruxa da Terra Abandonada e é amaldiçoada por ela. Ao se ver no corpo de uma idosa, Sophie decide sair de casa e acaba se refugiando no castelo de Howl, um bruxo temido por roubar corações de belas moças.

Foto: Studio Ghibli / reprodução

Castelo Animado tem um dos melhores alívios cômicos da história do cinema, o demônio do fogo Calcifer. Dono da icônica frase “tomara que o seu bacon queime”, Calcifer torna todas as suas cenas perfeitas e é tanto o alter ego de Howl quanto um dos protagonistas da história. A relação dele com o mago é muito bem construída e prende o espectador até o fim.

O pano de fundo d’O Castelo Animado é uma guerra. A história de Howl, Sophie e a Bruxa da Terra Abandonada por si só já traz um conflito interessantíssimo, mas os bombardeios constantes criam uma tensão ainda maior. A guerra não é muito bem explicada, mas sua inserção faz parte da mensagem pacifista que acompanha toda a obra de Miyazaki.

Outro filme muito bom é Princesa Mononoke (Mononoke Hime, 1997). Um dos mais longos, com duas horas e quinze, costuma ser simplificado como uma história em prol da defesa do meio ambiente, mas vai muito além disso. Ashitaka é um jovem príncipe que é amaldiçoado por ter matado um deus-javali e parte pela floresta em busca de uma cura. Ele encontra San, uma garota que cresceu com os lobos e que está em uma briga contra Lady Eboshi, a chefe de uma aldeia mineradora que ameaça a mata onde vive.

Foto: Studio Ghibli / reprodução

Princesa Mononoke é um filme sobre enxergar todos os lados da história. Embora fique muito claro que o diretor defende a preservação da floresta, os moradores da aldeia e sua líder têm uma narrativa muito interessante que explica suas motivações e não cria maniqueísmo, muito comum em filmes que tratam do meio ambiente em algum nível.

Além disso, Princesa Mononoke fala muito sobre ancestralidade – tema recorrente não só nos filmes do estúdio mas na produção cultural japonesa como um todo. É muito bonita a relação que se constrói entre Ashitaka e Sen, mas mais incrível ainda é ver como ela se conecta com a floresta e os lobos, com quem cresceu, e se sente pertencente àquele mundo apesar de ser humana. Esse conflito, entre a humanidade e a vida com os animais, é muito marcado na personagem, mas a forma como ela se apega a suas raízes mostra a carga da cultura japonesa na narrativa.

Todos os filmes do Studio Ghibli valem a pena Embora este texto tenha mencionado apenas cinco longa-metragens, é interessante conhecer a filmografia completa do estúdio. Com obras que vão desde a fantasia e o irreal até conflitos adolescentes, os vinte e um filmes disponibilizados no streaming são maravilhosos, apaixonantes e encantadores. A melhor forma de vê-los é degustando aos poucos; uma maratona pode ser cansativa. E não se preocupe se você se perder na simbologia e nas metáforas; como diz Zeniba, personagem d’A Viagem de Chihiro, “nada do que acontece é esquecido para sempre, mesmo que você não se lembre.”

Por Julia Mayumi / juliamayumi@usp.br