Pandemia no cárcere: tortura dentro e fora das grades

Por Bruna Caetano e Laura Barrio

Mateus* é o único homem entre as três irmãs. Pai de três meninos e tio 12 vezes, sempre teve uma relação especial com elas e com a criançada da família, principalmente após a morte do pai, em 2011. Depois que chega das visitas, Renata*, sua irmã, é interrogada pelas crianças: 

— Mãe, eu queria ver ele, você falou que eu amo ele?

— Tia, tia. Como é que tá o meu tio?

A resposta é sempre cautelosa: 

— Tá bem, tá até mais gordinho.

A verdade é que, a cada visita, Renata encontra o irmão cada vez mais magro e abatido, mas acha que não adianta preocupar os pequenos.

Voltar para casa e deixar Mateus no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) em Manaus (AM) é a parte mais difícil das visitas. Ainda mais durante a crise sanitária do novo coronavírus.

Ele vive 22 horas por dia em uma cela com mais 27 homens, onde deveria caber oito. A água do cômodo é armazenada em um pequeno tanque de cimento e é racionada — se eles escolhem lavar as mãos com frequência, ficam sem banho. Os detentos não têm produtos de limpeza e higiene pessoal, quem dirá máscara, álcool em gel, acompanhamento médico ou distanciamento social.

Renata viveu a angústia de ter o irmão preso e sem visitas durante os quatro primeiros meses da pandemia de Covid-19, sabendo que, enquanto ela e sua família se preocupavam em cumprir as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), ele estava “refém do Estado”, como bem disse. Praticamente incomunicável, sem a quem denunciar as torturas que o sistema prisional pratica e sem notícias da família.

— Eu pensei que vocês tinham desistido de mim — revelou Mateus a irmã quando eles finalmente puderam se reencontrar. 

— Nunca. Nunca isso vai acontecer.

Renata e a família tentaram, sem sucesso, se comunicar com Mateus. Para finalmente conseguir as três ligações a que tiveram direito, foi preciso ir até a Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) implorar por notícias.

Ele estava na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP), um dos presídios que tiveram as visitas suspensas como “medida de segurança” ainda no dia 14 de março. Se ousasse tentar falar sobre o que acontecia dos muros para lá nas únicas três ligações que teve com a família, sabia que seria silenciado pela direção. Até tentou: 

— Mana, tenta trazer um remédio pra mim que aqui eles não dão remédio nenhum para a gente não, e eu tô me sentindo muito mal. Eu tô gripado eu acho, não sei o que eu tenho, não sei se eu tô com essa doen…

E a ligação foi cortada.

A essa altura, a mãe de Mateus e Renata estava internada há cinco meses e, depois de várias solicitações na SEAP do Amazonas para conseguir uma videochamada, faleceu sem conseguir ver o filho, no dia 9 de abril. O juiz autorizou a saída do interno para que se despedisse da ente no velório, mas o pedido foi negado pelo diretor do presídio, Robert Washington Barreto. 

Mateus sequer foi avisado sobre a morte da mãe no dia. Soube 15 dias depois, quando foi chamado por um agente penitenciário: 

— Mateus, tem que subir porque sua mãe morreu. 

Desesperado, ele subiu e foi colocado em uma videochamada com Renata, que tentou consolar o irmão. “Eu não sabia nem o que dizer para ele, porque eu sabia que eles que decidiram que ele não podia nem fazer a videochamada para ver a minha mãe no velório.”

Assim, “católico, devoto de São Jorge”, Mateus não pôde dar o último adeus a sua mãe. De tantos momentos desafiadores atravessados pelo detento e seus familiares na jornada do cárcere, esse com certeza foi dos mais difíceis. 

Por momentos como esse, tem horas que até a fé se abala. 

— Ah, mana, Deus não olha por nós aqui dentro, não — desabafou com Renata durante uma visita. “É muito sério uma fala dessa vir de uma pessoa que é católico praticante”, diz ela, contando que tenta tirar esses pensamentos da cabeça do irmão. E, então, ele se apega de novo às orações: 

— O tanto que eu oro, mana, para Deus tocar no coração desses homens… Não há necessidade de ser dessa forma. Aqui nada acontece de bom, a única coisa boa que tem é a visita.

Pouco depois, no dia 2 de maio, aconteceu uma revolta de internos que protestavam por melhores condições no presídio e pediam a presença da imprensa e de organizações defensoras dos direitos humanos durante as negociações. Em um vídeo gravado por eles, gritavam por melhoria e denunciavam: “O sistema prisional sem visita, sendo que os ‘auxílio’ vem aqui dentro, traz a doença pra cá pra dentro. Tem irmão morrendo aqui dentro, tá todo mundo doente, parceiro. Não tem medicamento, não tem remédio. Os presos já estão revoltados”.

Do lado de fora também tinha revolta. Contrastando com a enxurrada de informação que se encontra sobre o coronavírus dos muros do presídio pra cá, lá dentro pouco se sabe sobre o vírus que virou o mundo de cabeça para baixo. “Pra você ter uma ideia eles acham que coronavírus, pandemia e Covid-19 são doenças diferentes. Eles têm que estar o tempo todo dando informação pros internos? Não. Mas eles poderiam dar uma orientação, já que não nos permitiram entrar”, pensa Renata.

Após a rebelião dos internos, Mateus foi transferido para o Compaj, em julho, sem a família ser avisada. Não sabiam nem se ele estava na lista de feridos da revolta.

“A gente não teve notícia nenhuma. Nenhuma. A gente teve denúncias de internos que saíram e que falaram que tava todo mundo doente. E aí a gente questionou a respeito disso, inclusive a Pastoral Carcerária mandou um ofício pro Tribunal de Justiça aqui do Amazonas questionando essa denúncia. Tinha até áudio deles falando que tinha mais de 300 irmãos doentes. A SEAP nunca se pronunciou a respeito disso.”

Suspensão de visitas como perpetuação da tortura

A falta de informações da SEAP e da direção do presídio, somada à preocupação com o aumento das torturas lá dentro, trouxe um sentimento de impotência em Renata.

Ela faz parte da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas, e junto com outros familiares e amigos de pessoas presas, luta pelo cumprimento dos direitos dos que estão encarcerados. Antes mesmo da pandemia, a Frente já cobrava o poder público a respeito das condições degradantes que as pessoas são submetidas na prisão. 

Foto: pastoral carcerária

As visitas sempre foram parte importante desse processo de denúncias das violações dos direitos humanos nas prisões. É através delas que familiares e entidades como a Pastoral Carcerária recebem denúncias das pessoas presas sobre as condições torturantes do sistema prisional. 

Organizações que têm atuação ligada a questão prisional, como a Pastoral Carcerária e a Frente pelo Desencarceramento, defendem que a suspensão das visitas, para além de uma ferramenta de manutenção da tortura, também é um instrumento de tortura por si só.

Lucas Gonçalves, assessor jurídico da Pastoral, explica que o conceito de tortura pode se estender a “tudo aquilo que distrubui deliberadamente dor a outra pessoa” — o que ele entende ser o caso da interrupção das visitas. E as pessoas privadas de sua liberdade não são as únicas afetadas: “Os familiares também são vítimas dessa seleção de dor e violência. Ficar cinco, seis meses longe do seu ente querido é algo que produz sentimentos violadores da dignidade humana”.

Gonçalves reitera, ainda, que “as visitas funcionam como um canal de detecção de violação de direitos da pessoa presa. Ao suspender as visitas, esse canal com o exterior se perde. O fechamento do sistema carcerário tende a agravar as violações de direitos contra pessoas privadas de liberdade”. Ainda assim, o número de denúncias de tortura aumentou no período da pandemia.

Impedida de encontrar o irmão em razão da pandemia, Renata questiona a eficácia da restrição: “Eles proibiram as visitas, mas estava tendo funcionários nos seus turnos, então essas pessoas entravam e saiam… Foram feitos testes? Sim, mas a gente não sabe de resultados nem de internos e nem de funcionários. A falta de informação é total.”

Dada as condições das unidades prisionais do país, a letalidade do vírus dentro das prisões é cinco vezes maior que fora dela, de acordo com o cálculo feito em maio pelo jornal Folha de S.Paulo. O número, contudo, é subnotificado, já que, de acordo com o monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só 16,9% das 880 mil pessoas presas foram testadas.

A solução vista pela Pastoral Carcerária e pela Frente pelo Desencarceramento para o fim da proliferação do coronavírus e da tortura sistêmica do cárcere é uma só: o desencarceramento e o investimento na resolução de conflitos através da justiça restaurativa. “Se você desencarcera, devolvendo a pessoa ao convívio familiar, você impede a reprodução da enfermidade pandêmica no sistema prisional e, ao mesmo tempo, impede a aplicação do ato de tortura nas famílias”, explica Gonçalves.

Renata conta que desde o começo da pandemia familiares se mobilizaram para tentar levar materiais de higiene e vitamina C para dentro das unidades prisionais, mas não conseguiram. Antes mesmo da pandemia, a higienização das unidades já era difícil e muitas vezes os materiais não entravam. Com a suspensão das visitas, só piorou. A lógica era clara: os internos denunciavam todos os fins de semana, nas visitas, e a semana que seguia era de cobrança da SEAP e da administração da unidade pelos familiares.

O problema é que nem sempre os questionamentos e os protestos eram bem recebidos. Renata explica: “Quando eu comecei a visitar, eu entregava material de limpeza e material de higiene, e o familiar também entrava com um quilo de alimento. Mas a cada reclamação, a cada tentativa de qualquer questionamento, a gente perdia um item: se antes entravam 10 itens, já ia entrar nove dessa vez. Era uma punição aos familiares”.

É fato que as condições sanitárias são parte significativa da tortura sistêmica das unidades prisionais brasileiras. Faltam materiais de higiene, sabonete, pastas de dente ou desodorante. A comida muitas vezes vem podre, com larvas, sem tempero. 

Além da degradação da dignidade, a insalubridade causa doenças de pele, como o surto de piodermite que contaminou mais de 600 detentos na Penitenciária Agrícola de Roraima, em fevereiro deste ano. É também a causa da epidemia de tuberculose dentro dos presídios, onde a incidência da doença é 30 vezes maior que fora da prisão.

Mateus compartilha os dramas que vive dentro da cela com a irmã. Ele conta que há colegas seus que passam um mês inteiro tomando banho sem sabonete, escovando os dentes sem creme dental. “Quando tem pasta eles têm que escolher: ou escova o dente ou passa pasta na axila porque eles não recebem roll-on. Já era assim antes da pandemia.”

Nessas condições, as preocupações com o coronavírus só fazem aumentar: “Meu Deus, se esse vírus entra e pega aqui vai matar geral, tá todo mundo fraco”.

Mas não só desses mecanismos funcionam as engrenagens das “máquinas de moer gente” que são boa parte das prisões brasileiras. A Frente pelo Desencarceramento recebe denúncias de violências físicas recorrentes, como da prática do “corredor polonês”, realizada por agentes e policiais. Nela, detentos são enfileirados, nus, obrigados a se encostarem, e então são agredidos um por um. Além disso, se acumulam denúncias de castigos, espancamentos, xingamentos e terrorismo psicológico.

Apesar de inaceitável e criminosa, a violência institucionalizada não é exclusividade dos presídios masculinos.

Assim como Renata, Lurdes* também enfrenta o drama de acompanhar de perto a realidade do sistema carcerário brasileiro. Letícia*, sua filha, está presa há dois anos, agora em regime fechado na Penitenciária Feminina de Manaus (PFM).

Antes da conclusão de seu julgamento, passou pelo Centro de Detenção Provisória Feminino (CDPF), comandado pela Tenente Socorro Freitas. Lá, pela primeira vez, sentiu na pele as violências do cárcere, e Lurdes, a agonia de ter a filha, que nunca havia perdido de vista, em perigo longe de seus olhos.

No CPMF, “a tenente liberava para eles [policiais] entrarem, deixavam elas nuas, derramavam água no corredor, mandava elas correrem nuas. Quem caia, caia, eles saiam batendo para levantar logo. E nuas na frente de homens”, contou Lurdes, conforme a denúncia feita por sua filha.

Durante a experiência traumática no Centro, “ela sofria muitas violações”, resume a mãe. “Elas são xingadas todo o tempo com palavrões de baixo calão, não tem reuniões com as internas, não tratam elas bem.” 

Lurdes conta um episódio vivido pela filha para exemplificar: Letícia se envolveu em uma briga com outra interna, que a atacou com um pedaço de espelho, e foi punida com o isolamento. “Minha filha ficou no castigo durante 30 dias, eu fiquei indo lá direto e eles não me informavam nada.  Por que não ligaram para avisar que não ia ter visita? Fiquei gastando dinheiro, fiquei indo… E no castigo deveria pelo menos ter medicamento, vitamina D, porque a gente sabe que o sol é fonte de vitamina. No isolamento ela ficou amarela, com a pele esverdeada de não tomar sol.”

Para Lurdes, não faz sentido falar em ressocialização em condições tão degradantes de descuidado. “Eu não quero que ela saia sem cumprir aquilo que ela deve para justiça. Eu quero que ela tenha liberdade, mas que volte sendo uma pessoa diferente. Só que lá dentro, sendo torturada desse jeito — porque é um tipo de tortura — o caráter vai ser danificado. Ao invés de gerar pessoas melhores, gera pessoas piores.”

A menina é descrita pela mãe como carinhosa e estudiosa. Depois que ela foi presa, a proximidade entre as duas só cresceu: “Aumentou o amor, a saudade, aumentou tudo porque eu não a vejo todos os dias. Ela sempre dormiu comigo, e depois que meu esposo faleceu, a gente ficou mais unida ainda. Logo em seguida isso aconteceu com ela.” 

Foi a partir “disso” que Lurdes, como Renata, sentiu o peso do que é ser familiar de um apenado, vivendo a realidade prisional para além do “ponto de vista que aparece na mídia.”

Em fevereiro, Letícia foi transferida para a PFM e, pouco antes da primeira visita na nova unidade, a suspensão foi decretada pela SEAP do estado. 

Mesmo impedida de ver a filha, Lurdes sentiu alívio pela mudança. “Lá é muito diferente. O capitão que toma conta, a gente vê, ele gosta muito delas. As internas gostam muito do jeito que ele adotou para direcionar elas para um caminho melhor. Então lá ela [Letícia] se encontra trabalhando, lá elas têm cinco refeições, elas fazem cursos…”

Sobre a gestão da pandemia dentro da unidade, o relato de Lurdes é também muito mais alentador que o de Renata. Segundo a filha, as internas que apresentavam sintomas de Covid-19 são isoladas e recebem tratamento. As detentas também têm à disposição álcool em gel e máscara. Além disso, foram oferecidas a elas palestras de conscientização sobre a doença. “Se você tem um diretor que é um pouco humano, ele vai usar da humanização dele para fazer o SUS chegar para cada um dos internos”, avalia a mãe. 

A própria Letícia suspeita de ter contraído o vírus, mas teve acompanhamento médico, tratou os sintomas com medicamentos e logo se recuperou. A mãe também foi infectada e teve sintomas mais graves, como a falta de ar, mas a maior preocupação era com a filha: “Eu tinha que sobreviver, tinha que lutar por causa dela, porque depois que isso tudo passasse, eu ia visitar ela”.

Lurdes sabe que o suporte prestado pela administração da PFM, no entanto, é exceção. A realidade da unidade é muito diferente da vivida por grande parte dos encarcerados: “Na outra penitenciária, muitas mães e internas falaram que não estavam tendo esse acompanhamento. Eu sei disso”.

A denúncia vai de encontro ao relatado por Mateus a sua irmã. Na unidade onde ele está preso, “os internos só sobem pra enfermaria quando fazem o que eles chamam de ‘batidão’. Se tem um interno que está muito doente, já desmaiando, desfalecido mesmo, todo o pavilhão bate na porta, que é de ferro, para fazer o barulho. Quando alguém vai ver o que é, eles falam: ‘Aqui na cela tal o cara tá morrendo’. Mas se o cara não estiver morrendo, ele é espancado. Então eles não podem chamar por causa de uma dor no corpo, ou por causa de uma febre, né, porque se não a pessoa ao invés de receber atendimento médico vai receber uma sessão de espancamento.”  

Dia de visita

“A gente fica preso junto com eles.” Esta é uma máxima entre familiares de pessoas privadas de liberdade. Além dos sentimentos de dor e saudade compartilhados com os entes encarcerados, essas mães, companheiras, filhas e filhos são também vítimas de humilhações e agressões, como vários de seus parentes presos. 

Renata e Lurdes relatam experiências traumáticas em dias de visita.

Em Manaus, as unidades prisionais contam com quatro meios de revista eletrônica dos visitantes. O primeiro deles é o body scan, um dispositivo de detecção de objetos dentro do corpo de uma pessoa para fins de triagem de segurança. Segundo Renata, “por dia, voltam em torno de 25 a 30 mulheres, porque dá uma alteração, uma mancha, que a gente não sabe identificar o que é, e falam na nossa cara que pode ser gases. E eu digo: ‘Se você está vendo que são gases, porque que eu não posso entrar?’ É uma coisa sem sentido”, desabafa. 

Nesses casos, os detentos não recebem visita e muitas vezes não são informados do motivo da ausência dos familiares. Para evitar a uma possível sensação de abandono, Renata já deixou o irmão avisado: 

— Mano, no dia que tu não receber uma visita não é porque a gente não veio, é porque a gente não passou no body scan. Toda vez que tiver visita a gente vai estar aqui na frente tentando entrar para te ver.

Em dias de visita, as roupas também são controladas pelos agentes penitenciários. No Compaj, as visitantes só são autorizadas a entrar de calça legging e camiseta acima da cintura. Também não são permitidos sutiãs de bojo ou com armação de ferro. Renata se solidariza com as senhoras evangélicas, que usam saias por determinação da religião: 

“A gente percebe no semblante daquelas senhoras o incômodo de ter que tirar sua saia e colocar a legging”. E revela também sentir vergonha: “Eu tenho 36 anos, mas eu me sinto constrangida em estar usando uma legging que marca meu corpo”.

Em uma das visitas que fez ao irmão, Renata viu uma mulher aparentemente incomodada e a acolheu: 

— Você quer ajuda? Está tudo bem? 

A garota estava constrangida porque teve de tirar o top antes da visita. “Os bicos de peito dela estavam marcando bastante. E lá só tem homem. Aí vem uma menina nova com o peito… Eles olhavam. E ela cruzou os braços na frente dos peitos para sair, totalmente constrangida. E quando sai, não tem como colocar o top de novo, porque ela teve que jogar ele no lixo. Ali no quadrante da revista, uma vez que tu sai, tu não volta”

No CDPF, onde Letícia cumpriu pena provisoriamente, Lurdes viveu experiências traumáticas também no momento pré-visita: “Se a gente fica no nossos dias de mulher da menarca, tem que tirar o absorvente na frente delas, tirar a roupa, mostrar tudo.”

Reencontro

Para Renata, rever Mateus foi difícil. Depois de quatro meses sem ver o irmão, o encontrou irreconhecível. Se recuperando de uma suposta gripe, ele estava mais magro, debilitado e com o emocional abalado pela morte da mãe. Renata precisou se controlar para não deixar transparecer o choque ao vê-lo tão diferente. 

— Eu tô muito magro né, mana, tô feio. Tô muito magro?

— Não mano, tava precisando emagrecer, né? Negócio da pressão… Ficar doente aqui é ruim.

Quando já estava preso, Mateus ganhou mais uma sobrinha, a Maria*. Em todas as visitas ele faz questão de lembrar a irmã de mostrar sua foto para a sobrinha, para que ela o reconheça quando ele sair da prisão. “A foto que a gente mostra pra ela aqui, é outra pessoa que tá lá dentro. De toda forma, quando ele sair, ela não vai reconhecer porque não é o cara que tá na foto que a gente mostra pra ela.”

Os sobrinhos não têm o direito de visitar e as cartas também não entram nos presídios, então todas as visitas são marcadas pelos recados da família e pela troca de “eu te amo” entre os dois.

“A gente conversa muito sobre a nossa família assim, muito mesmo. Eu conto histórias dos meninos, conto vitória dos meninos, dos mais velhos, ele fica feliz. Mas assim, eu tento levar só coisa positiva, né, pra alegrar. Passa 15 dias e ele vai pensar nas informações que eu levei pra ele.”

— Fala pro Lucas* e pro Tiago* se cuidarem, cuidarem da mãe deles, mana. Fala que eles têm que cuidar de ti que eu tô preso.

— Ô, mano, tá tudo bem, lá fora tá tudo bem, só falta você lá.

A saudade aperta também na Lurdes e na Letícia, que sempre foram inseparáveis. Antes da liberação das visitas, tiveram cerca de 10 videochamadas, mas vê-la através da tela do celular não era suficiente para acalmar o coração da mãe.

“Quando eu vejo minha filha… meu Deus, que saudade, meu coração só falta sair do meu peito. É muito bom. (…) Eu sinto muito a falta da minha filha, muita saudade mesmo, porque eu nunca saí de perto deles. E essa falta, essa saudade, dói muito.”

Letícia, por sua vez, sempre tenta acalmar a mãe dizendo que em breve vai voltar para casa, vai trabalhar e estudar. “Tudo isso ela tá fazendo lá dentro esse ano né, mas ela quer vir mesmo é para casa. Fazer isso em casa, ter minha ajuda como sempre teve, como mãe, tá do lado conversar, abraçar, beijar. Sem ser preciso eu vir embora e ela ficar.”

Mas aí vem a parte mais difícil das visitas para Lurdes e para Renata: a hora de ir embora — e a saudade e a preocupação vão com elas. A próxima conversa, agora, só depois de 15 dias. E cada 15 dias é 15 dias a menos, até que a liberdade as una aos seus parentes de novo.

* Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.

Por Bruna Caetano e Laura Barrio / brucaetano@usp.br / Laurabarrio@usp.br