O valor da leitura em 2020: ameaças ao acesso e tendências dos consumidores

O mercado editorial brasileiro não para de passar por mudanças bruscas e, com isso, as problemáticas também se transformam. Em 2014, a chegada da Amazon no país abalou as estruturas de grande livrarias, como a Saraiva, que ainda luta para apresentar um plano de recuperação judicial, e a Cultura, que recebeu um decreto de falência em 2018, embora este esteja suspenso desde setembro deste ano.

Ambas as empresas apontam para fatores como a falta do hábito de leitura pelo brasileiro e os preços praticados pelo e-commerce da Amazon, que adquire lotes de livros por meio de distribuidoras em vez de consigná-los, o que permite uma negociação de valores e, posteriormente, os vende por preços muito mais baixos do que a concorrência e do que as próprias editoras responsáveis pelos livros. A prática comercial em questão é velha. Chama-se dumping, que consiste em não lucrar com as vendas no início visando derrubar os competidores e estabelecer um monopólio. É o que chamam de “efeito Amazon”.

Ironicamente, antes da chegada da gigante norte-americana no Brasil, Saraiva e Cultura utilizavam a mesma técnica, com descontos agressivos que ameaçavam e prejudicavam pequenas editoras e outras livrarias. Em certos casos, os descontos dados em seus respectivos sites superavam até mesmo o de suas próprias lojas físicas, afastando o leitor destes espaços.

  Quanto aos hábitos de leitura do brasileiro, a situação parece estar mudando. De acordo com a pesquisa “Retratos da Leitura”, realizada entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, pelo Instituto Pró-Livro, a população estaria lendo menos, saindo de 56%, em 2019, para 52%, em 2020, a porcentagem de brasileiros com o hábito de ler. Porém, em contraposição àquilo que se esperava, a pandemia fez com que os leitores comprassem mais livros físicos. As informações são do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), em entrevista ao Jornal do Comércio em outubro deste ano, após 8 meses de pandemia decretada. 

A partir de março, livrarias e editoras tiveram de repensar seus modelos de negócio, ficando até 100 dias com as portas fechadas. Em maio e junho, a curva de vendas de livros começou a mudar. Segundo o Painel de Varejo dos Livros no Brasil, julho marcou a interrupção de queda e o começo da evolução positiva. O mês teve uma alta de 17% no faturamento em relação ao mesmo mês de 2019. Entre setembro e outubro, foi constatado um aumento de de 7,31% nas receitas, com a venda de 3,17 milhões de exemplares. No panorama do ano, o saldo ainda é negativo devido ao impacto dos meses anteriores marcados pelo início da pandemia, e o cenário sempre pode mudar devido às oscilações imprevisíveis neste período de crise.

         Mesmo livrarias grandes como Saraiva correm risco de falência. Foto: Saraiva/Divulgação

Esses dados se referem ao comércio de livros físicos por meio de plataformas digitais. As livrarias que não contam com o meio online encolheram. Segundo dito pelo presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares, ao portal G1, quando as livrarias reabriram suas portas em julho, as vendas diminuíram em 70% em comparação com o habitual. Além disso, as dívidas com editoras se tornaram maiores e a folha de pagamento, por outro lado, se manteve. Ainda segundo Tavares, o problema foi acompanhado por outro: a produção caiu e poucos autores têm lançado obras novas.

Pensando em ajudar pequenas livrarias, a Câmara Brasileira do Livro, a Associação Nacional de Livrarias e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros se uniram para promover a campanha Retomada das Livrarias, entre julho e agosto de 2020. Com uma meta de R$ 300 mil, o projeto conseguiu apenas 12% do valor, R$ 38 mil. Foram contempladas 53 livrarias brasileiras para dividir o valor de maneira igualitária.

“O projeto tem o objetivo de arrecadar fundos para ajudar financeiramente as micro e pequenas livrarias, tão importantes para o setor e para a economia do país. Com a reabertura dos estabelecimentos e atividades comerciais em diversas cidades brasileiras, as empresas do setor livreiro precisam receber um incentivo importante para fortalecer seus negócios diante de um novo cenário”, anunciava o site da campanha. 

Uma ameaça maior

Mesmo com toda a inconstância do mercado editorial, causado pela crise global de pandemia, pelo surgimento de novas empresas e pelas mudanças nos hábitos de leitura, o livro ainda é protegido de tributações e relativamente democratizado. Ao menos, até o momento. Para piorar a situação do livro, há uma nova ameaça no horizonte. 

 Em 1946, o escritor e deputado federal Jorge Amado criou uma ação de emenda para isentar impostos sobre o papel, utilizado em livros, jornais e revistas. “Nossa emenda visa libertar o livro brasileiro daquilo que mais trabalha contra ele, daquilo que impede que a cultura brasileira mais rapidamente se popularize, daquilo que evita que chegue o livro facilmente a todas as mãos, fazendo dele no Brasil um objeto de luxo. Quando tanto o livro escolar quanto o de cultura mais alta constituem necessidade de todos os brasileiros”, declarou na época em que defendeu o texto constitucional.

Anos depois, em 1967, uma iniciativa resultou na ampliação desse benefício para o objeto em si, consolidando a jurisprudência da ação do autor de Gabriela Cravo e Canela. A partir daquela data, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios foram proibidos de criar impostos sobre o livro. 

Já em 2004, durante a gestão do cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, com a minirreforma tributária do Simples Nacional e a homologação de contribuições sociais, como o PIS e o COFINS, os impostos sobre a venda de livros tornaram-se ainda menores. Isso permitiu a redução dos preços: entre 2006 e 2011, o valor médio diminuiu 33%. Impostos reduziram de 10% a 6%. Em abril deste ano, decisão unânime do STF estendeu a isenção aos livros eletrônicos.

Porém, todas essas conquistas, importantes para tornar o livro mais acessível, estão em risco com a nova Reforma Tributária que tramita pelo Congresso após ter sido enviada pelo Executivo, em nome do ministro da Economia Paulo Guedes, o Projeto de Lei 3.887/2020. A lei propõe a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços. Se aprovada, a CBS, que estabelece uma alíquota única de 12%, revogará os artigos da lei de 2004. Ou seja: a proposta ameaça a produção, a importação e a venda de livros.

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Mas os defensores do livro não ficaram calados. No início de novembro, foi encaminhado ao presidente do Senado e do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre, um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas eletrônicas contra o projeto. A iniciativa partiu de três jovens universitárias, uma de 17, uma de 20 e outra de 21 anos. Os nomes dos apoiadores foram recolhidos ao longo de 15 dias e a meta inicial era de apenas 50 mil assinaturas. “Despertaram a atenção do Brasil e de todos os setores envolvidos na cadeia de produção de livros. Não podemos tornar os livros ainda mais caros no Brasil”, discursou o senador Major Olímpio (PSL-SP), após encaminhar o documento.

“Não esperávamos alcançar 1 milhão de assinaturas nem no nosso maior sonho. Tínhamos uma meta de 50 mil assinaturas. Com a mobilização, alcançamos juntos e juntas, em uma hora, o 1º lugar nos Trending Topics do Twitter com a hashtag #DEFENDAOLIVRO”, postaram as estudantes após entregarem a petição ao senador, com mais de 52 mil páginas de assinaturas.

Foram criadas redes sociais para a campanha “Defenda o Livro”. Foto: Reprodução/Instagram

As estudantes falaram ainda sobre o apoio que receberam de diversas pessoas. “Vimos as mais variadas pessoas se pronunciando, mostrando que lutariam por isso com a gente: celebridades, escritores, editores, leitores e educadores. Os livros acompanharam toda a nossa vida, nos ensinaram a crescer, ensinaram que não podíamos desistir e que conseguiríamos enfrentar qualquer coisa. Nós de forma alguma somos elite, somos filhas de trabalhadores que lutaram muito para que pudéssemos ler”, relataram.O manifesto ressalta também os impactos que a aprovação da PL 3.887/2020 poderá causar aos escritores. “Um autor recebe, em média, 10% do preço de capa do livro por direitos autorais. Caso a reforma seja aprovada, o governo passará a receber 12%. Ou seja, mais que o autor do livro”, concluíram.

Por Anny Oliveira / annyoliveiramartins@gmail.com