Homens em casamentos heterossexuais buscam sexo gay no transporte público de São Paulo

“Eu vos declaro marido e mulher”, disse o padre. Após um longo suspiro ele segurou forte na mão de sua esposa e a beijou. Subir ao altar e ouvir a frase que mudaria para sempre a sua vida não foi fácil. O sorriso no rosto do noivo deixava transparecer a felicidade para todos ali presentes, mas por dentro o medo e a esperança de um recomeço estavam em conflito com os sonhos do jovem de apenas 22 anos. “Foi só uma fase, logo tudo isso vai passar. Tudo vai passar! Tudo vai…”, repetiu a frase como se fosse um mantra até o momento do “sim”. 

Aquele dia, no começo da década de 90, ficaria gravado em sua memória. Não pelo desejo de casar-se e construir uma família como a maioria de seus amigos fizeram. Para ele, o casamento simbolizou a mudança de hábitos consigo e se tornou a prova materializada de que tudo que diziam a seu respeito não passavam de meros boatos. 

A cerimônia comunitária realizada na cidade de Sobral, no interior do Ceará, foi muito rápida. Os votos foram ditos apressadamente, porque a preocupação do casal estava em outro lugar. A noiva precisou amamentar o filho recém-nascido, que não parou de chorar um segundo sequer no colo da avó materna. O bebê, a mulher, a igreja e a palavra de Deus eram os lembretes de transformação na vida daquele homem. Ninguém mais o chamaria de “Lulu”, em referência ao personagem interpretado por Eri Johnson na novela Barriga de Aluguel. Ninguém. 

Quase três décadas depois, às 20h, Ricardo, 52 anos, saía do trabalho e seguia em direção à estação de trem Morumbi da CPTM, em São Paulo. Passou a catraca com uma bolsa pendurada apenas em um dos ombros e subiu lentamente as escadas até chegar a passarela. Seus olhos estavam atentos a todos os movimentos. Comportou-se como se estivesse perdido, à procura de informação, ou na espera de ver alguém que marcou de encontrar. 

Por um instante senti que Ricardo me seguia desde os primeiros lances de degraus. Então, passei a observá-lo atentamente. 

Sua vida havia mudado drasticamente desde o dia que decidiu tentar a sorte na cidade grande junto com a esposa e o filho. Não veio para cá somente em busca de uma vida melhor, como milhares de outras pessoas fazem, queria, na verdade, se distanciar daquele lugar, da desconfiança e de pessoas que faziam-no lembrar dos hábitos deixados após o casamento.

Estabeleceu-se na cidade de Taboão da Serra, na região metropolitana de SP, a poucos quilômetros do local onde trabalha em um escritório de contabilidade. Mas, agora, tinha três filhos para cuidar. Aqui nasceram as outras duas filhas gêmeas do casal. Com olhos azuis e cabelos loiros naturais, elas tinham puxado os traços europeus do pai, descendente de holandês. Nas fotos que mostrou no celular, aparentavam ter a pele bem clara e as maçãs do rosto, avermelhadas. Eram a cópia de Ricardo, exceto pelos tons grisalhos que tomavam de conta de sua cabeça inteira. 

Ele falou com muito orgulho dos filhos, exibia-os igual a troféus, sem sombra de dúvidas eram a sua maior conquista na vida. Tudo realmente havia mudado — o mantra parecia ter dado certo. Seus olhos azuis cintilavam ao falar da faculdade do primogênito, que se tornou um dentista bastante requisitado na região. O amor estava presente em cada palavra dita na conversa. “Acredita que eu finalmente vou ser avô?”, disse dando uma gargalhada. 

Na passarela, Ricardo passou ao meu lado sutilmente, e quando ganhou o dobro de distância à frente, olhou para trás e sorriu. Estranhei aquela atitude, mas continuei andando em direção à plataforma de trem. Durante o caminho, ele repetiu a atitude algumas vezes. Por precaução esperei ele descer as escadas e segui em direção oposta.

Nordestina arretada, capaz de fazer qualquer coisa pela felicidade dos filhos e marido, enfrentaria o mundo se fosse necessário — e assim o fez diversas vezes. Casou-se com 16 anos, no auge da adolescência. Conhecia Ricardo desde a infância, pois moravam na mesma rua, colados porta com porta. A proximidade era fortalecida pelas mães dos jovens, amigas de longa data. Foram incontáveis as vezes que comemoraram, juntos, festa junina, aniversários, natal, réveillon, sem imaginar que seriam um dia marido e mulher.

À época, ela já detestava ouvir os boatos maldosos a respeito de seu querido amigo, acreditava que, por ele ser um rapaz bonito e solteiro, as pessoas criavam histórias porque sentiam inveja. 

Ricardo vez ou outra comentava sobre a esposa, mas nunca mencionou o nome dela na conversa. Nas palavras dele, até hoje existe muita gratidão e cumplicidade no casamento, sua voz ganhava um tom sóbrio ao destacar a importância da esposa para família. Parecia falar com sinceridade. Mas logo expressava um semblante de tristeza, talvez não achasse justa a vida dupla que mantinha sem o conhecimento da amada.  

Sentei-me no último banco da plataforma para aguardar o trem. Quem costuma andar na linha esmeralda da CPTM sabe que o último vagão é sempre mais vazio e calmo. Enquanto o tempo passava, aproveitei para terminar a leitura de um livro. Poucos instantes depois, avistei ao fundo um vulto se aproximando, parecia inquieto. Andava de um lado para o outro, e olhava em minha direção. Cheguei a pensar que nos conhecíamos, mas eu não sabia de onde.

“Prazer, meu nome é Ricardo”

“Você é árabe?”, perguntou o homem ao se aproximar. “Acho que meu avô era libanês”, respondi com espanto. De maneira inusitada aquele homem simpático deu início a conversa — depois dessa frase foram raros os momentos de silêncio. Ele sorria, alegre, e talvez um pouco nervoso, sentou-se ao meu lado, mas antes pediu permissão. 

Era notória a sua aptidão para a comunicação, falou sem parar um minuto sequer. Comentou que o clima estava quente; ficou preocupado com o trânsito na marginal Pinheiros; reclamou da lotação nos trens. Em certas ocasiões, quando ficou sem respostas, logo partia para outros assuntos. “Caramba! Esqueci de me apresentar. Prazer, meu nome é Ricardo”, disse gargalhando. 

Vinte minutos haviam se passado, e neste espaço de tempo, perdi quatro trens. Continuei sentado, sem saber o que fazer. Estava completamente envolvido no diálogo com aquele estranho — mal podia imaginar que, em breve, saberia de quase todos os seus segredos. A situação parecia esquisita e cômica ao mesmo tempo, mas coisas esquisitas acontecem a todo instante no transporte público de São Paulo. Imaginei que seria um desses dias. 

Em determinado momento, Ricardo começou a fazer elogios à minha aparência, a partir daí demorou pouco para a conversa ganhar outro tom. Nessa hora, sua mão esquerda não saia mais de dentro do bolso da calça. O homem antes gesticulador, com a risada frouxa e de voz alta, havia se retraído.  

Como outras pessoas também estavam na plataforma de trem, falou as palavras quase em sussurros por medo delas serem ouvidas. De certa maneira, fiquei incomodado com os caminhos que aos poucos a conversa ganhava, mas queria saber onde ela chegaria, porque um detalhe muito importante me chamou atenção. Ricardo usava uma aliança de casamento, mas tentou escondê-la quando os elogios se tornaram mais picantes. 

“Você é muito interessante. Aceita ir agora num motel comigo perto da estação Santo Amaro?”, disse Ricardo sem hesitar. “Pago todas as despesas, não se preocupe!”, completou. Ele agia como se estivesse habituado a fazer aquilo sempre, carregava anos de experiência — fato que se confirmaria depois. O convite ficou reverberando na minha cabeça por alguns segundos. Quanta audácia! Ele poderia ser um aliciador, ou sei lá. Pensei em mil teorias, mas foi aí que decidi colocá-lo contra a parede. “A vergonha na cara ficou onde? Você é casado! Sua mão esquerda tem uma aliança”.  

Ricardo ficou extremamente envergonhado, pediu desculpas, mas continuou a abordagem, desta vez, de maneira cuidadosa. Insistiu diversas vezes para me levar a um motel. Desistiu somente após ouvir todas as recusas. Ficou visivelmente frustrado, porém, mesmo assim decidiu continuar conversando comigo. O relógio avançou mais de uma hora, outros trens passaram e a intimidade repentina entre nós só aumentava.    

A esposa não sabia que toda quinta-feira o marido saia duas horas mais cedo do trabalho. Ricardo usava aquele intervalo de tempo para tentar encontrar nas estações de metrô ou trem algum rapaz disposto a fazer sexo rápido, sem compromisso. O curto espaço de tempo que tinha, entre o prazer e o horário de chegar em casa sem levantar suspeitas, justificava o motivo dele ser tão direto ao ponto. Por isso, ao longo dos anos frequentou cada estação da linha esmeralda para saber quais locais de fácil acesso estariam disponíveis para levar os parceiros. 

O percurso até o motel escolhido não podia levar mais de dez minutos a pé. Seu objetivo principal era aproveitar cada segundo e otimizar os 120 minutos preciosos que tinha. Aquele sujeito parecia ter um roteiro prévio de como proceder em qualquer situação, com ações friamente calculadas. Afinal, nada podia dar errado.

Era um homem cuidadoso com as suas práticas, carregava dentro da mochila um kit com duas camisinhas, lubrificante, creme dental e uma escova de dente. “Eu traio a minha mulher por questões pessoais, não com outra mulher, eu a amo. Por isso sempre estou protegido, não exponho ela ao risco de pegar alguma doença”, comentou. Porém, a traia com outros homens. 

Em sua cidade natal, envolveu-se com um rapaz durante a adolescência, ambos tiveram um relacionamento que durou quase três anos. Foi um momento mágico na vida de Ricardo, sentia-se feliz, pronto para ter uma vida apesar de todo o preconceito que sofreria caso assumisse aquele namoro. Mas antes precisaria conquistar a independência financeira, porque, com certeza, seus pais o expulsariam de casa se soubessem de algo. 

Sentia saudades daquela época, isso era nítido. Foi a primeira vez que se apresentou vulnerável diante das lembranças. Por um momento seus olhos se perderam nas memórias e se encheram de lágrimas. Levantou o dedo indicador para cima e começou a balbuciar o trecho de uma música de Tim Maia. “Ah! se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar dizer que aprendi… e na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri”.  Tudo ganhou sentido depois disso. Ricardo queria contar a sua história sem sentir medo de julgamentos alheios, não desejava que ela morresse junto com as lembranças. 

Na tentativa de disfarçar o momento de fragilidade, Ricardo interrompe a cantoria para falar que o moço por quem se apaixonou é primo de terceiro grau de sua esposa. Porém, nunca mais teve notícias dele. 

No início, ninguém desconfiou da amizade entre os dois rapazes, mas os anos se passaram e comentários maldosos começaram a circular entre a vizinhança. Os pais de Ricardo ficaram furiosos quando souberam dos boatos, diziam ter criado um filho homem para ser “macho”. Preferiam ver Ricardo morto, do que vê-lo nos braços de outro homem.  

O namoro acabou quando o rapaz se mudou para Recife, Pernambuco. Mas os boatos continuaram, e foi assim que se viu obrigado pela família a casar-se. Deixou os sonhos e a sua vida de escanteio quando cedeu à pressão. 

Nossa conversa não se desenrolou apenas em um único dia. Ricardo era muito rigoroso com o horário, jamais deixaria a família esperando. Encontrei com ele durante três quintas-feiras seguidas. Em nossa primeira despedida, perguntou-me se podíamos nos ver novamente, queria contar mais histórias sobre a sua vida. Pediu para que o esperasse no mesmo horário, sempre ao lado do elevador da estação. 

Depois de todos os encontros voltou para as filhas, antes de dormir disse que amava a mulher e se deitou no conforto do seu lar.

Mapa do sexo metropolitano de São Paulo

Uma estação antiga e grande, com a edificação atual datada de 1979, fica entre as áreas militares de Osasco e o centro da cidade. Praticamente no meio do nada, longe de qualquer movimento nas redondezas. Cercada por muros e grades altas com árvores de copas cheias. De um lado ficam residências e pequenos comércios da região, do outro, há um enorme terreno baldio pertencente ao exército. Das janelas na estrutura superior da plataforma de trem, é possível observar que existem vacas e cavalos ocupando a área, isso explica o forte cheiro de esterco do local — mugidos são ouvidos com frequência.   

À noite, por volta das 20h30, os trilhos do meio começam a virar estacionamento de trens da linha esmeralda e diamante. Graças a isso quem está de um lado da plataforma não consegue ver o que acontece do outro. Por algum motivo os seguranças da CPTM se concentram mais no lado próximo às residências. Talvez suponham que nada perigoso possa vir da área militar. O local tem uma iluminação fraca, em alguns pontos sequer há foco de luz. São nesses lugares, perto de colunas, que tudo acontece.  

Em meio às lembranças, Ricardo comentou que às vezes seguia em direção à estação Comandante Sampaio da CPTM, em Osasco, para uma diversão rápida. De acordo com ele, nem havia necessidade de sair da plataforma. Encontrava rapazes, na maioria casados, sem qualquer tipo de dificuldade. O local é um ponto conhecido por homens que se reúnem à noite para trocar experiências sexuais. “Existem outras estações de trem e metrô que são conhecidas por serem lugares de pegação gay que muitos homens casados frequentam”, completou. 

Quando o relógio aponta 20h a estação Com. Sampaio ganha um movimento peculiar de homens que descem dos trens, mas ficam sentados esperando o tempo passar. Todos os bancos são ocupados, os indivíduos que chegam mais tarde ficam em pé ou se sentam na escada e aguardam. A grande maioria dos homens que frequentam o local são adultos acima de 30 anos e usam aliança de casamento nos dedos — de relações heterossexuais ou homossexuais. 

Nathan, 25 anos, é auxiliar de culto na Congregação Cristã no Brasil, conhecida por ser uma vertente evangélica bastante rigorosa em suas doutrinas. Ele está com o casamento marcado para outubro deste ano, e era um dos rapazes sentados no banco. Se destacava pela diferença de seus trajes que nada combinavam com a situação. Vestia roupas típicas de um homem religioso: camisa de manga longa, calça e sapatos sociais, e uma bolsa carteiro para guardar a bíblia e hinários. 

Estava visivelmente nervoso, sua perna esquerda às vezes tremia. Antes de ir para aquele canto escuro, disse que o pecado fazia parte de sua vida há muito tempo e, provavelmente, continuaria depois do casamento. Desde a infância pedia a Deus inúmeras vezes para livrá-lo desses “espíritos malignos” — expressão falada por ele. Nathan acredita que isso um dia acontecerá. O jovem rapaz não queria se casar de maneira nenhuma, seu maior sonho é viver longe da família preconceituosa, ser independente e ter sua vida, mas tinha medo das possíveis consequências.  

Quando a noite caiu, ele assim como outros homens foram para debaixo das escadas, o restante seguiu para espaços entres as paredes e colunas de sustentação da plataforma. Ali, na penumbra, foram se masturbar, alguns faziam sexo oral, outros mais corajosos seguiam para o fim da plataforma para manter relações sexuais, de fato. Geralmente, dois homens ficam responsáveis por serem os vigias da situação, quando alguém distraído ou um segurança se aproximam, eles fazem sinais para avisar os colegas. Tinham pouco mais de dez minutos entre a chegada de um trem e outro para finalizar os atos.

Depois que terminou de se masturbar, Nathan se sentou de novo no banco e esperou o tempo passar. Parecia refletir sobre o que tinha acabado de fazer. “Vou voltar para casa e cuidar da minha mãe”, disse cabisbaixo. Pegou o trem por volta das 21h15. 

Por Wender Starlles
wenderstarlles@usp.br