Relatos insoniosos

01 de maio de 2020, 3h47 a.m.

Engraçado pensar na evolução do “ficar acordado à noite”. 

Quando crianças, ficamos acordados até tarde por ser algo proibido, que nossos pais não deixam porque precisamos ter energia para o dia seguinte. Havia, e acho que sempre haverá, algo de secreto em viver enquanto os outros dormem, sem ninguém observando. E que criança não se sente atraída em fazer algo secreto e proibido? Sempre haverá crianças  acordadas à noite.

Segundo os médicos, dormir é algo importante para a saúde, ajuda no crescimento, na imunidade e no desenvolvimento cognitivo. Mas é claro que não é tão fácil assim explicar essas coisas para uma criança. Ah, se soubesse antes… talvez teria dado mais valor às horas de dormir. Talvez me tornasse uma pessoa mais inteligente e fosse alguns centímetros mais alta. 

Na adolescência, a gente fica acordado até mais tarde porque é legal, é “coisa de adulto”.  Que adolescente não quer se sentir mais adulto? Afinal, não é nessa época que a gente acha que já tem maturidade suficiente, viveu o suficiente e que consegue fazer qualquer coisa? É aqui que começam as festinhas a partir das 19h e terminam depois da meia-noite, ou então as noites de estudos e revisões pré-provas escolares. Ou ainda as noites online, conversando com amigos ou estranhos em fóruns de discussões de qualquer coisa. 

De repente, o dia fica pequeno. não dá pra estudar, trabalhar e ter um momento de lazer em família ou sozinho em um mesmo dia sem entrar madrugada a dentro. Quanto mais a gente cresce, menos tempo dorme e o cansaço começa a acumular. E se fosse só o cansaço, tudo bem. É possível tirar um dia para dormir a mais. Os fins de semana são para isso. Mas e quando não se consegue dormir? Como bem pode ver, são quase 4h da madrugada e estou acordada, falando do sono e cansaço que sinto e não consigo me livrar. 

De acordo a Associação Brasileira do Sono, pelo menos um terço dos brasileiros sofre de insônia. Acho que infelizmente faço parte desse terço. Dizem que insônia tem o estresse como causa principal, então imagino que esse número tenha aumentado durante a pandemia que estamos vivendo. Me solidarizo com quem estiver sofrendo com isso agora. Será que sofro de estresse desde sempre? Não sei. 

Depois de quase seis meses sofrendo rotineiramente com isso, sinto uma certa raiva de precisar dormir, da hora de ir para a cama e fico ansiosa quando começo a sentir sono. É muito triste não conseguir fazer direito nem mesmo a coisa mais natural e básica dos seres vivos. Demoro para pegar no sono, qualquer coisa me atrapalha. Fico ouvindo a respiração do cachorro na tentativa de me acalmar e nada acontece. 

É claro que eu durmo, porque ninguém consegue não dormir tanto tempo sem morrer. Em todo caso, eu honestamente não aguento mais dormir mal. Houve noites totalmente em claro, rolando na cama. Teve também os momentos de ir ver documentários sobre a natureza para tentar dormir (e não consegui). Às vezes, acordava quando percebia estar dormindo. Ah! e não vamos esquecer dos dias em que só desmaiava de sono em horários aleatórios do dia, por horas e horas e, mesmo assim, não sentia que tinha dormido. 

Por um lado, sinto até que já me acostumei com a situação. E talvez seja assim mesmo. Dormir um pouco ou dormir mal é melhor que nada. Não estou mais em fase de crescimento e nenhum sistema imunológico forte é sinônimo de proteção atualmente.

Enfim, estamos todos sofrendo e cansados. 

13 de maio de 2020, 2h16 a.m.

Em mais uma saga de noites e sono frustrados, perguntei por aí o que as pessoas pensam antes de dormir. Uma das respostas que recebi foi “o ideal é não ficar pensando, mas se for, pense no seu dia”. Quanto mais tentei, mais pensei. 

Os dias tem sido como todos os dias, literalmente. Acordar, ver notícia, começar a trabalhar, parar e ver alguma coisa na TV. Acho que antes era assim também, mas pelo menos podia sair de casa. Contando os dias, faz cinquenta dias que São Paulo está na quarentena por causa da pandemia de Covid-19, um novo coronavírus que pegou o mundo de surpresa. Começou na China em dezembro do ano passado. Se espalhou pela Ásia, chegou na Oceania, Europa, América e África. 

O mundo parou com a pandemia para proteger as pessoas, milhares morreram e continuam morrendo aqui, alí e em todo lugar. Os sistemas de saúde do mundo inteiro estão sobrecarregados e o melhor jeito de nos protegermos é nos isolando. A produção não-essencial parou, o “home office” foi instaurado onde deu e as projeções econômicas para o futuro próximo são desanimadoras. 

Mais de cinquenta dias… O primeiro caso chegou ao Brasil em 26 de fevereiro. Na metade de março iniciamos a quarentena. “quinze dias”, disse o governador de São Paulo, João Dória. Incrível como quinze dias se transformaram em cinquenta. No começo… Não sei bem se lembro como foi o começo, mas todo mundo achava que eram só quinze dias mesmo. A ideia era de que desse o tempo de efeito da doença para rastreá-la novamente. No final descobrimos que a doença já tava no país desde janeiro e aí já tava todo mundo perdido. 

E no começo, diziam que era um vírus pouco letal, que poucos morreriam, que às vezes nem apresentavam sintomas. No começo, eu e alguns amigos até brincávamos que queríamos pegar o vírus para ter uns quinze dias de descanso da nossa vida… Difícil acreditar que era assim depois de mais de xx mil mortes em quase três meses. E sabe o que é mais engraçado que tudo isso? Vi muitos conhecidos e amigos perdendo parentes por causa da doença, mas eu não tive a doença, ou alguém que eu conheço e amo de fato. 

É estranho porque quando falam os números de mortes, falam os “números de mortes”, não o de “pessoas que morreram”. Talvez não tenha diferença, mas acho que tudo seria diferente se falassem de uma forma mais humanizada. Quando ouço o números, sinto medo e solidariedade das pessoas que perderam entes queridos, claro, mas é só isso. Não fico tão triste ainda… Peço desculpas ao que sentem mais. 

O que eu sinto é algo mais parecido com ansiedade. Ansiedade para saber como estão meus pais, que passam a quarentena longe de mim (talvez eu devesse ligar mais para eles…); ansiedade de poder pegar a qualquer momento. A ansiedade de saber o mundo que a gente vai encontrar depois. Quem vai sobrar. 

Então, melhor dizendo, impressionante e assustador como “quinze dias” se tornaram uma enorme incerteza. Para muitos já virou uma tragédia e para outros muitos, o fim. É impossível não pensar nessas coisas na hora de dormir. Se já era difícil dormir antes, imagine agora… 

19 de maio de 2020. 4h06 

Dizem que chorar muito relaxa e ajuda a descansar depois. Normalmente funciona, mas nada é mais como normalmente era. Há uma semana me demitiram do trabalho. Não sei dizer bem como me senti, só sei que chorei. Chorei todos os dias desde então, continuo chorando hoje. Não sei explicar o motivo, porque eu já nem gostava tanto do meu trabalho assim e vivia dizendo que queria me demitir. Era cansativo, estressante, massacrante, me fazia sentir como uma pessoa burra e incompetente. 

Não que eu me sinta diferente agora. Na verdade, continuo me sentindo assim, talvez até mais agora. E eu sei que muito provavelmente teve mais a ver com a crise e a pandemia do que com o meu trabalho em si, porque metade das pessoas foram demitidas junto comigo. Mas e daí?

Acho que tenho direito de ficar triste e nervosa e ansiosa com isso. O mundo caindo, todo lugar demitindo mais do que contratando, empresas fechando, pessoas morrendo, tudo ficando cada vez mais caro, todas as contas caindo…. Só de pensar me dá desespero. E a parte que mais dói é todo o discurso pré-quarentena de tentar salvar os empregos que meus chefes faziam. E a nenhuma expectativa de conseguir algo novo em breve é uma angústia toda vez que preciso comprar algo essencial, como comida, ou pagar uma conta.

  Todo esse jogo do trabalho é uma desgraça. Você trabalha pra ter dinheiro e conseguir comprar suas coisas essenciais e se dar alguns poucos pequenos prazeres, os quais nem consegue curtir direito porque não tem tempo, pois na maior parte do tempo estamos no trabalho. 

Mas ainda assim, encontra um emprego em uma área que gosta, pelo menos. Mas é massacrado por ele em todos os níveis possíveis devido a pressão eterna de perder esse emprego, esses pequenos prazeres e a possibilidade de comprar o essencial . A gente é refém do nosso salário, que nunca condiz de fato com o valor do nosso trabalho, e é descartado igual lixo quando as coisas apertam para quem comanda a empresa. 

E a pior parte é que você aprende a gostar disso. Dos pequenos desafios diários, a receber uma bronca e sair por cima no final. Também aprecia todos os erros que cometeu e aprendeu com eles. Todos os perrengues em grupo… aquilo toma conta da sua pessoa, passa a definir você. Geralmente como uma conversa acontece? “Oi, tudo bem? meu nome é fulano e faço isso aqui pra viver”. Quando você não faz nada, é o que? O que você é, não o que você faz, tem importância? E a humilhação de não fazer algo?

A gente está o tempo todo fazendo tanta coisa que acaba virando essas coisas. E agora que faço nada, sou nada? “Tira um tempo para você, fique sem fazer nada”, disseram. Pois bem. Também não ganho nada agora, então devo morrer de fome pelo capricho de não ser nada? Faz sentido até, pois se você não existe, não precisa comer. Acho que é essa deve ser a lógica dos que negam comida e auxílio aos moradores de rua. 

É cruel demais. Sempre soube que era, mas neste contexto tudo fica pior e mais  explícito. Mas trabalhar era uma terapia ocupacional, a qual ocupava meus dias e até me impedia de pensar nos problemas. Era uma compensação, “está tudo ruim, mas pelo menos eu trabalho, me distraio e recebo algo por isso”.  

Mais que isso, talvez… Era a única coisa que eu tinha e que me dava esperança de que a vida voltaria ao normal, como era antes. Se nem o emprego de antes eu tenho mais, o que vai sobrar quando isso acabar? 

02 de junho de 2020, 5h12 a.m

Depois de setenta dias de confinamento, vendo apenas as mesmas pessoas que moram comigo, a mesma vista, me mexendo pouco e indo só no mercado, preciso confessar que não aguento mais ficar em casa. Não sinto falta do meu antigo emprego também, na verdade me sinto muito leve agora que saí. Mas fico em um tédio constante em que nada é feito direito. 

Meus dias são: estudo um pouco para projetos futuros, leio bastante, vejo muitas notícias e depois descanso. Esse era o plano, mas não consigo me disciplinar para seguir essas coisas em casa. Só sou sugada pelo sofá enquanto vejo notícia, que aliás são tão desanimadoras que dão menos vontade ainda de se fazer algo. Parece que tem uma enorme diferença em sair de casa para fazer algo e fazer em casa. A casa é o local de descanso, sempre foi e agora passou a ser lugar de tudo. Isso é horrível.

A coisa que eu mais sinto falta em sair de casa para ir estudar ou trabalhar é o transporte público. Sim, eu sei que é estranho. Mas em uma rotina normal, quando saiamos de casa e ficávamos horas na rua indo de um lugar produtivo para outro, o transporte público é aquele tempo que tínhamos para não pensar em nada, apenas ouvir uma música ou ler um livro. E mesmo com a péssima infraestrutura e a superlotação, ainda era um sentimento de descanso. Pelo menos para mim, era. Era como ficar sozinha no meio de outras pessoas sozinhas. Triste, não? Mas eu sinto falta disso. 

Mas não é como se eu sentisse vontade de pegar um ônibus ou metrô só para dar uma volta e pronto. Sinto falta de ter propósito para sair. Ir de um lugar ao outro, não apenas ir erroneamente para algum lugar. Qual o ponto de qualquer sem um propósito? Acho que essa é a questão, afinal. Hoje temos todos os motivos para ficar em casa: a pandemia, o risco de se contaminar, proteger os demais, o fato de estar tudo fechado, etc, etc, etc. 

Engraçado que antes tudo era motivo para não sair. Faltava aula porque queria ficar em casa, dormindo ou descansando. Não ia em eventos dos meus amigos porque queria ficar em casa, pois já ficava muito tempo fora de casa, porque era mais confortável. Vai ver o ser humano realmente só se importa com as coisas que não pode fazer. Ou vai ver, a gente nunca tenha dado o devido valor ao movimento de ir e vir. 

Falando em amigos. Às vezes acho que não terei mais alguns quando tudo isso acabar. Quando tudo isso começou, também começaram a falar, principalmente a mídia, em alternativas tecnológicas para manter contato com as pessoas que estão distantes. Isso é um debate antigo com muitos entusiastas, mas acho que esses entusiastas também sentem saudade do contato humano. 

A tecnologia é ótima em falar com as pessoas a distância, mas às vezes a gente não quer só falar. Falta o abraço, a presença, a vivência cotidiana entre as pessoas. As relações nascem assim, de vivência conjunta. Se não tem isso, o que sobra? Claro que o carinho sempre fica, mas tenho medo de terminar esse processo mais sozinha do que já comecei, com pessoas se afastando de mim e esquecendo que eu existo. Porque nem eu mais sei se existo. 

9 de junho de 2020

Não sei mais quantos dias estamos em quarentena e para efeito prático não importa muito. Sei que faz uns meses e mesmo assim não me adaptei completamente. Não consigo instaurar uma rotina que me permita ser produtiva e relaxar ao mesmo tempo, de forma equilibrada. Tem dia que faço demais e depois muitos dias que faço de menos. Engraçado isso, não é? É como se fosse impossível ter equilíbrio em uma situação desequilibrada. Mas, se parar para pensar, a vida nunca foi equilibrada. Acho que essa é síntese de tudo que foi dito aqui. 

Desequilíbrio no sono, na rotina, nas atividades externas. “Fazer demais”. Lembro que fazia demais antes, que vivia cansada, que não conseguia fazer nada com a devida dedicação e que na maioria das vezes só queria não estar vivendo se fosse para viver daquela forma. 

A gente vivia de formas muito extremas, com cobranças internas e externas tão grandes que massacravam o cotidiano, mas era tanta coisa para ser feita que nem ligavámos e só íamos nadando com a corrente, com esperança de desembocar em um rio mais tranquilo. Mas isso acabou nos levando para uma cachoeira e não sabemos por quanto tempo vamos ficar caindo ou onde vamos parar. 

Só que tem uma coisa: não tem como lutar contra quedas livres, contra correntezas sim, mas quedas não. Esse é o momento em que a gente realmente só pode esperar. E enquanto a gente espera, a gente tem fé de não morrer nem na queda, nem no impacto. Uma das questões principais é: o que fazer se sobrevivermos? 

Mas eu gosto de pensar que em momentos de queda livre se chamam assim porque podemos escolher onde cair. Se for assim, seria possível trocar de rio?

Sei que parece maluquice, na minha humilde opinião, estávamos todos indo para uma autodestruição, tanto que chegamos onde estamos devido a esse modo de vida em que se produz muito e se pensa pouco sobre os impactos que causamos. 

Talvez esse seja o momento de avaliarmos como era a vida que levamos antes e para onde ela podia nos levar. Melhor ainda: pensarmos para onde de fato queremos ir enquanto sociedade. 

Por Letícia Tanaka
leticiamtanaka@usp.br