Violência doméstica durante a pandemia: um problema de todos

“Paz não é só a ausência de guerra. Muitas mulheres durante a quarentena da Covid-19 estão encarando violência onde deveria estar seguras: nas suas próprias casas. Hoje, eu apelo por paz nas casas ao redor do mundo. Peço para todos os governantes colocarem a segurança das mulheres em primeiro lugar nas ações contra a pandemia”, foi a fala de António Guterres, chefe da ONU, no dia 5 de abril. A violência doméstica não é um problema novo. Pelo fato de nossa sociedade ter sido criado com base em uma cultura machista e patriarcal, a agressão contra mulheres foi naturalizada e ignorada por muito tempo. Com as máximas “em briga de homem e mulher não se mete a colher” — dizer apoiado por 58,4% das pessoas entrevistadas na pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres” conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2014 —, sempre foi incentivado que se deixasse casais se resolverem entre si. A resolução, entretanto, são números exorbitantes de mulheres mortas e agredidas todos os anos. Conforme números do Data Senado de 2019, 41% dos casos de violência contra a mulher são causados pelos companheiros e 37% por ex-companheiros, explicitando que o chamado “crime passional” vêm vitimando mulheres ao longo dos anos.

O cenário começou a mudar no Brasil em 22 de setembro de 2006, quando entrou em vigor a Lei nº 11.340, famosa pelo nome “Lei Maria da Penha”. Vítima de duas tentativas de assassinato pelo marido, Penha se tornou um ícone no país de luta contra a violência doméstica e nomeou o decreto que oferece instrumentos legais à mulheres vítimas de agressões dentro da própria casa. Vale ressaltar que, a todo momento que a palavra “violência” é usada, se enquadram casos de “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, segundo termos da própria lei. Antes dela, os casos de agressão contra mulher eram enquadrados em boletins de ocorrência generalizados e os números não eram contabilizados.

Por mais positivo que seja o decreto da lei no país, os números ainda são preocupantes e relevantes para o diagnóstico de como está sendo tratado o problema. Em dados do Atlas da Violência de 2019, produzido pelo IPEA, os números de 2017 mostram que 13 mulheres são vítimas de homicídio todos os dias no Brasil em períodos “comuns”. Vale ressaltar, também, que os números refletem a diminuição da subnotificação, providenciados pela maior sensibilização de mulheres pelo assunto e maior divulgação dos meios de comunicação para prestar queixa e pedir auxílio nesses casos.

Os dados já eram preocupantes no país e se tornaram alarmantes durante a adoção da quarentena para tentar controlar os casos de Covid-19 no Brasil. Desde o dia 11 de março de 2020, data marcada pela suspensão de aulas e serviços não essenciais, a população (ou uma fração dela, que aderiu às medidas) têm adotado normas de distanciamento social e quarentena, sendo incentivados a ficarem em casa se possível. Para quem não trabalha em serviços essenciais, março e os meses seguintes estão sendo sinônimos de passar a maior parte do tempo em casa, e, consequentemente, com quem divide o espaço. Para muitas mulheres, o distanciamento têm sido dividir a casa com seu agressor, ou possível agressor. 

O mundo todo tem tentado chamar atenção para o aumento dos casos de violência doméstica no período da quarentena, em que a mulher se torna mais vulnerável por não ter escapatória, com seu companheiro sempre à espreita. As pesquisas mostram que o alvoroço não é em vão. Na publicação extraordinária feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um retrato compara os números de março e abril de 2020 com os dados do ano anterior. Eles mostram que, por mais que os registros de denúncias de violência doméstica nas delegacias tenha diminuído em 25,5% — o que pode ser interpretado pela maior dificuldade ou medo de deixar a residência —, os chamados para Polícia Militar, no 190, registrando casos de violência doméstica cresceu 44,9% no mês de março, em comparação ao mês anterior, e as denúncias no Ligue 180 — Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência — foi de 37,6% no período de isolamento social.

A casa sempre foi o lugar mais perigoso para mulheres vítimas de violência. Entre 2007 e 2017, 39,2% dos homicídios — momento mais grave das agressões — de mulheres no Brasil aconteceram dentro de casa. Entre os homens, o índice é de 15,9%. No momento da pandemia, em que as pessoas estão confinadas em casa e com a relação restrita ao companheiro, os números tendem a piorar.

No dia 20 de março, o país se chocou com a notícia de que uma moradora de Chapecó, oeste de Santa Catarina, escreveu “SOS AP 23” com batom em uma toalha e jogou da janela. A vítima estava há sete horas em cárcere privado sem as chaves do apartamento, sem celular e sendo vítima de diversas agressões, físicas e psicológicas, causadas pelo marido. Pelo mundo, mais outras notícias como essa se espalharam e vêm mostrando o quão urgente o assunto é, principalmente na atual conjuntura.

No resto do mundo, as notícias não vem sendo diferentes. Conforme números divulgados pelo Centro de Informações Regionais das Nações Unidas, os países da região da Organização Mundial da Saúde Europa registraram um aumento de 60% no número de chamadas de emergência de mulheres vítimas de violência em comparação com abril de 2019. 

Cada país vem tentando adotar estratégias para auxiliar as vítimas de violência doméstica durante a quarentena. Na Itália e na França, quartos de hotéis estão sendo reservados para mulheres que precisam de abrigo longe de seus agressores; na Espanha, canais de conscientização para agressores foram criados com o intuito de ouvir, acompanhar e oferecer alternativas à violência. Além da Europa, na África do Sul foi proibida a venda de bebida alcoólica, para evitar o agravamento de situações de violência como um todo, e na Argentina e no Chile, mulheres que pedem uma “máscara vermelha” na farmácia são socorridas pelos canais de denúncia.

Presas no ciclo da violência

L.O., que terá o nome protegido nessa reportagem, conheceu seu namorado pela internet. Ela conta que desde o começo ele se mostrava extremamente violento e possessivo, acusando-a de o enganar — o que fez com que a mulher não aceitasse visitas do namorado, já que morava com a mãe e a filha pequena e temia por elas. Com o tempo, ela adquiriu mais confiança no rapaz e permitiu que ele se mudasse para a casa da sua mãe, passando a morar com as três mulheres. A história de amor acabou rápido. L.O. conta que seu namorado usava muita droga e não trabalhava, dependendo dela para o sustento. 

A primeira agressão aconteceu quando a mulher discutiu com ele sobre a ida à uma festa sem a companheira, e não parou mais. “Minha vida se tornou esse ciclo: ele me agredia, eu perdoava. Ele me tratava como empregada doméstica e quando queria transar não aceitava o meu não — hoje eu sei que isso era estupro.” L.O. também conta da vez que o namorado reclamou do serviço doméstico, que ela fazia sozinha, e ela tentou estabelecer um diálogo para resolver o conflito. “Me coloquei na porta e disse vamos conversar. Ele puxou a porta e acertou meu rosto, que começou a sangrar na hora. Não satisfeito, me jogou no chão e começou a me bater com um capacete com chutes. Liguei pra polícia, fui pra porta do condomínio e, enquanto eu esperava a polícia, ele saiu com uma arma, colocou na minha cabeça e disse que se eu falasse algo ele ia me matar. Então a viatura passou e eu fingi que não tinha chamado”.

Na quarentena, tudo parece ter piorado. L.O. continua presa com seu agressor, que constantemente a ameaça de morte e a tortura psicologicamente, principalmente por estarem presos muito tempo juntos. A mulher conta já ter saído para registrar alguns boletins de ocorrência antes desse período, mas que nada foi feito pela polícia. “Hoje ainda estou viva, mas choro por saber que não é a sorte de muitas”.

Relatos chocantes como esse não são exceção entre as mulheres entrevistadas para essa matéria. Histórias de vítimas que ficam anos presas em ciclos de violência infelizmente populam grupos nas redes sociais e relatos na mídia. Um estudo conduzido pela psicóloga norte-americana Lenore Walker identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido. Na primeira fase, chamada de “aumento da tensão”, o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. Isso faz com que a vítima se sinta culpada, tente evitar condutas que possam provocá-lo e não revele a situação para ninguém, achando que alguma atitude sua que está provocando essa reação.

A segunda fase corresponde à explosão do agressor, onde a falta de controle chega ao limite e leva ao ato violento. Toda a tensão acumulada na Fase 1 se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Em geral, a mulher vítima das agressões se sente paralisada e impossibilitada de reagir e sofre de uma tensão psicológica severa, com sintomas como insônia, perda de peso, fadiga constante, ansiedade. 

Após isso, a terceira fase se caracteriza pela “lua de mel”, quando o agressor se mostra arrependido e se torna amável para conseguir a reconciliação. Como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. A mulher se sente confusa e pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo quando o casal tem filhos. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da Fase 1.

M.S., com nome também ocultado por motivos de segurança, viu a agressão se agravar depois do começo da quarentena em casa com o marido. Em janeiro, a professora sofreu o primeiro episódio de violência física, foi à delegacia e teve seu pedido de boletim de ocorrência recusado, por ser sábado à noite. O agressor a seguiu e ela teve que voltar para casa acompanhado dele. Sem uma medida protetiva, M.S. não consegue afastar legalmente o marido e está presa em casa com ele por causa do home office. A vítima conseguiu alugar um segundo apartamento em seu nome, mas foi impossibilitada de mudar e sair do ciclo de violência por não conseguir fazer a mudança com o marido em casa. “Preciso esperar um dia que ele saia por um longo tempo de casa, para eu levar o que é meu”, explicou M.S., que se vê dentro do ciclo de agressão até o final da quarentena, quando seu marido, que também trabalha em escolas, voltará a ficar fora de casa.

Mudanças no atendimento

Visando se adaptar ao momento em que não é recomendável sair de casa, a polícia se modifica para continuar atendendo mulheres em situação de violência doméstica. Em São Paulo, por exemplo, os boletins de ocorrência para denunciar esse tipo de agressão podem ser feitos pela internet no período da pandemia. Os disque denúncia continuam funcionando 24h pelos números 190 (central da polícia), 180 (atendimento à mulher em situação de violência) e 0800 0234567 (cidadania e direitos humanos). Os Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo estão dando andamento apenas para casos de urgência, como os de medida restritiva, que podem ser emitidas em até 48 horas e os agressores estão sendo notificados por e-mail e telefonemas.

Porém, por mais que essas adaptações estejam sendo feitas para facilitar a denúncia com o distanciamento social, um agravante é o fato de que em 91,7% dos municípios brasileiros não existe nenhuma delegacia especializada no atendimento à mulher (Deam), conforme números do último Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem essa equipe especializada, o atendimento à casos de violência contra a mulher ficam muito prejudicados, se misturando com outras ocorrências e não recebendo o atendimento adequado.

Nesse momento, fica visível o papel de Organizações Não Governamentais (ONGs) e associações que criam alternativas para socorrer mulheres que não conseguem ajuda de canais oficiais e órgãos do estado. Um exemplo é o Instituto Maria da Penha, ONG que funciona a partir de doações, financiamentos e parcerias, e vem há anos defendendo os direitos da mulher, além de promover iniciativas para combater a violência de gênero. Em períodos de normalidade, o Instituto proporciona workshops, consultorias, palestras e cursos de capacitação para o combate à violência. Agora, no período de exceção, vem publicando conteúdos para chamar a atenção das autoridades e da sociedade para o problema, como o vídeo ambientado na pandemia que viralizou nas redes sociais e denuncia o tipo de situação que muitas mulheres podem estar vivendo dentro de suas casas.

Nas redes sociais, campanhas como a #VizinhaVocêNãoEstáSozinha e #IsoladasSimSozinhasNão vêm ganhando espaço e criando uma rede de apoio voluntário entre as mulheres para socorrerem as vítimas de violência doméstica. Organizações como a Agora É Que São Elas, que nasceu de uma # de campanha nas redes e se tornou um blog no portal da Folha de S. Paulo,  vem incentivando movimentos como amarrar laços nas portas e janelas para demonstrar apoio e oferecer segurança para mulheres ameaçadas de agressão. Toda ajuda, no momento, se faz essencial para proteger as vítimas de violência doméstica.

Está se tornando comum também encontrar postagens nas redes sociais com dicas de como auxiliar as mulheres que estão passando por agressões ou ameaças de agressões dentro de casa. Nem sempre as mulheres têm acesso ao celular ou conseguem fazer ligações por conta do relacionamento abusivo em que vivem. Se conseguir entrar em contato com uma vítima, especialistas sugerem esses conselhos: ter um plano de emergência (para onde vou, com quem falo, como vou); ter uma chave reserva escondida sem o agressor saber, para evitar ficar trancada dentro de casa; deixar seus documentos e dos filhos em um lugar de fácil acesso, para o caso de precisar sair correndo; avisar vizinhas do risco para ficarem alertas à qualquer sinal de violência; combinar uma palavra de emergência que possa acionar alguém próximo para prestar socorro. Em todos os casos, o mais indicado é procurar o serviço de policiamento, por telefone ou ir até uma delegacia (da mulher, se disponível) e pedir a medida protetiva contra o agressor. Como rede de apoio, é importante se mostrar disponível para ajudar e não julgar a vítima, o que pode fazer com que ela se cale.

A pandemia não dá sinais de alívio tão cedo e os brasileiros veem dia após dia os números de casos e mortes por Covid-19 aumentarem — o que significa que cada dia mais mulheres estão em perigo dentro de casa com seus agressores. Com todos em casa, os vizinhos ganham um papel importante nesta quarentena. Sempre que alguém escutar barulhos suspeitos, deve ligar para o 190 ou 180. Todos podem ajudar a salvar vidas e tirar as mulheres do ciclo de violência que a agressão naturalizada as coloca dentro há séculos.

Por Giovana Vernizi Christ
giovanachrist@usp.br

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