A elitização do acesso à comida saudável no Brasil

Cinco maçãs, três pêras, duas ameixas, um cacho de bananas, um mamão, cinco laranjas, dois maracujás, quatro cachos de uva, duas caixas de morango, um quilo de tomates, duas cabeças de alho, três abobrinhas, uma couve-flor, dois maços de salsinha, uma rúcula, duas alfaces, um repolho, um vidro de palmito, um vidro de azeitona e dois pães caseiros. 

Esse é o conteúdo das sacolas de uma das compras semanais de Camila. São R$140 gastos em uma quitanda que fica próxima a sua casa, no interior de São Paulo. A família de Camila, de classe média alta, é composta por seus dois filhos e marido. 

Ela também frequenta supermercados, onde o foco é a compra de produtos como azeite, arroz, feijão, laticínios, frios, carnes, sucos e alguns poucos doces. O terceiro local que Camila visita com frequência é uma loja que vende produtos a granel. Lá, grãos, temperos e farinhas finalizam as compras da casa. 

Em Ilhota, município de Santa Catarina, as compras de Grazieli são diferentes. O armário em sua cozinha conta com caixas de leite, pacotes de macarrão instantâneo, molhos de tomate prontos, macarrão, arroz, pipocas de microondas, sucos em pó, bolachas, achocolatado em pó, caldos de galinha e carne, cappuccino instantâneo e outros produtos industrializados. Frutas, legumes e verduras? Somente cebola, alho, tomates e limões. 

Aos 18 anos, ela saiu recentemente da casa dos pais e mora sozinha em um apartamento. Segundo Grazieli, a falta de ânimo para cozinhar e a correria do dia-a-dia fazem com produtos industrializados sejam frequentes em sua alimentação. 

A jovem, de vez em quando, ainda almoça na casa de seus pais, local onde consome legumes, verduras e frutas. Quando a refeição é preparada por ela mesma o cardápio é bem mais restrito. “É sempre miojo ou frango com salada”, conta.

A escolha de Grazieli de deixar de lado a famosa dupla da alimentação brasileira, o arroz e o feijão, é algo cada vez mais frequente país afora. A aquisição de arroz no Brasil caiu 37% entre 2003 e 2018, enquanto a de feijão recuou ainda mais: 50%. (1) Esses dados, divulgados pelo IBGE na Pesquisa de Orçamentos Familiares, são uma parcela de um cenário mais amplo guiado pela diminuição do consumo de alimentos in natura no país. 

Tal tendência resulta do aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, que passaram a substituir a comida saudável em muitas refeições. Além do atrativo do sabor, esses alimentos contam com um fator que os aproxima da família brasileira: seus preços cada vez mais baixos. 

A partir de 2026, a comida saudável será mais cara que a não saudável no Brasil. Essa projeção, resultada de um estudo publicado no início desse ano, mostra que o país está seguindo uma tendência global: a da dominância dos alimentos ultraprocessados no sistema alimentar. 

Foto: Marjan Blan/Unsplash

O Guia Alimentar para a População Brasileira

Os supermercados estão cheios de embalagens que classificam os alimentos como “saudáveis”, “zero glúten”, “zero açúcar” e “zero lactose”. Isso parece tornar mais difícil a distinção dos alimentos que devem ou não ser consumidos. No entanto, em 2014, o Ministério da Saúde atualizou o Guia Alimentar para a População Brasileira, importante documento para nortear as diretrizes de alimentação saudável no país. 

Os alimentos são divididos em quatro categorias, definidas com muita clareza e de fácil compreensão. A primeira inclui os alimentos in natura — obtidos diretamente de animais e plantas —  ou minimamente processados — que são alimentos in natura submetidos a alterações mínimas. Frutas, legumes, tubérculos, folhas, ovos e leite são exemplos de alimentos in natura. Por sua vez, grãos empacotados —  como arroz, feijão e lentilha  —  farinhas, cortes de carne resfriados ou congelados, sucos naturais sem açúcar, verduras higienizadas e leite pasteurizado se encaixam na categoria dos minimamente processados.

A segunda categoria é a de óleos, gorduras, açúcar e sal. Esses produtos são extraídos de alimentos in natura e utilizados para temperar, cozinhar e criar preparações culinárias. Os exemplos estão presentes na culinária do dia a dia: azeites; óleos de soja, milho, coco ou girassol; banha de porco; açúcar branco, demerara ou mascavo; e sal grosso ou refinado. 

Os processados compõem a terceira categoria. São os produtos fabricados com a adição de sal, açúcar ou outra substância culinária a alimentos in natura. É como se esses alimentos fossem uma união das duas primeiras categorias citadas anteriormente. Queijos, frutas cristalizadas, extratos de tomate, atum enlatado e alimentos em conserva, como palmito, pepino e ervilha, são exemplos de alimentos processados. 

A quarta e última classificação engloba produtos cuja fabricação envolve etapas e técnicas de processamento e a adição de muitos ingredientes, de uso quase sempre estritamente industrial. Esses são os chamados ultraprocessados, cujos rótulos quase sempre contam com ingredientes desconhecidos pela maior parte da população. Refrigerantes, bolachas recheadas, macarrão instantâneo, salgadinhos e embutidos, como salame, presunto e peito de peru, exemplificam a classe de alimentos.

A recomendação do Ministério da Saúde neste documento é simples: fazer dos alimentos in natura ou minimamente processados a base da alimentação, consumindo processados com moderação e evitando os ultraprocessados. Foi usando essa classificação do Guia que seis pesquisadores publicaram na Public Health Nutrition a projeção de que 2026 será o ano em que comidas saudáveis passarão a ser mais caras que não saudáveis. (2)

O padrão brasileiro de mudança de preço

O estudo projeta esse “ponto de virada” para 2026 a partir de tendências observadas desde 1995. Os pesquisadores utilizaram a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e o Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor para definir os alimentos mais consumidos no Brasil e comparar a variação nos preços deles neste período de tempo. 

De 1995 a 2017, os alimentos in natura, minimamente processados, e processados, tiveram um aumento contínuo de preço. Em contrapartida, o valor dos ultraprocessados foi caindo a partir dos anos 2000 — sendo os refrigerantes, a única exceção. Esse tipo de bebida açucarada, no entanto, apesar de ter encarecido, continua sendo um dos produtos ultraprocessados mais baratos do mercado.

Um dos ultraprocessados analisado foi a salsicha. Assim como cortes de carne, o produto é uma proteína animal, porém se diferencia do primeiro por ser um embutido que conta com aditivos químicos comprovadamente maléficos para nossa saúde. No período entre 2011 e 2017, o quilo da carne (R$ 13,10) já era mais caro que o quilo da salsicha (R$11,33).

As diferenças de preços podem ser decisivas para as escolhas alimentares de parte da população. Camila, citada no início da reportagem, gasta em torno de R$ 450 semanais com compras de comida. Dividindo o valor pela quantidade de pessoas que compõem sua família, a média de gastos semanais por pessoa fica em aproximadamente R$ 115. “Felizmente, não preciso ficar comparando os preços para escolher o que levar”, comenta, reconhecendo que sua situação não é a da maioria dos brasileiros. 

Os irmãos gêmeos Leonardo e Eduardo, por sua vez, buscam tornar mais acessível a discussão sobre alimentação e o consumo em si. Os dois têm 24 anos e moram na cidade de Campinas, no Estado de São Paulo. Eduardo é vegano há cinco anos e Leonardo, há três. 

A dieta dos gêmeos se resume a produtos de origem vegetal, assim como qualquer vegetariano estrito. No entanto, se diferenciam por reduzirem o consumo de alimentos industrializados somente ao necessário. “Uma vez ao mês, compramos industrializados como óleo, sal, arroz, feijão e açúcar”, conta Leonardo. “Nossa alimentação é majoritariamente baseada em frutas, legumes e vegetais”. 

A escolha se justifica no ativismo defendido pelos irmãos na internet. Por meio de uma conta no Instagram (@veganoperiférico), eles compartilham suas refeições e receitas veganas com ingredientes simples. “O elitismo no veganismo está muito relacionado ao consumo de produtos. O que precisamos consumir é informação. A informação também é elitizada, mas é mais acessível. Ela não requer grana, requer consciência”, explicam.

Exemplo de postagem da conta de Instagram de Leonardo e Eduardo (@veganoperiferico)

A opção por alimentos in natura ou minimamente processados, no entanto, não impede que os irmãos consumam bolos ou sorvetes, por exemplo. Dentre as receitas, bolos sem produtos de origem animal, leite de amendoim com cacau e sorvete de banana substituem os tantos produtos com aditivos que estão nas prateleiras dos supermercados. 

O resultado disso? Além dos benefícios para saúde, Leonardo e Eduardo gastam em média R$ 60 por pessoa por semana. Esse dinheiro é majoritariamente gasto nas visitas semanais à horta urbana do bairro, onde compram orgânicos que vêm da agricultura familiar. 

Os gêmeos afirmam sentir a variação de preço em alguns dos alimentos que consomem, mas conseguem contornar isso através de escolhas sazonais. “Como consumimos muitas frutas, legumes e vegetais, tentamos considerar a época dos alimentos”, relata Leonardo. “Tangerina e abacate, por exemplo, são alimentos que só compramos em determinadas épocas, já manga e banana, a gente come o ano todo.”

Por que ultraprocessados têm seus preços cada vez menores?

Não é possível definir uma única causa para essas variações de preço observadas, já que vários fatores podem ser citados como potencialmente responsáveis. A motivação mais fácil de ser identificada é o avanço tecnológico das indústrias, que torna o processo de produção de alimentos algo muito mais rápido e barato.

Outro fator é a política agrícola brasileira, que é organizada para a produção de commodities, como soja, milho e açúcar, que, por sua vez, são base para vários alimentos ultraprocessados. Logo, a indústria de ultraprocessados se beneficia da abundância de matéria prima de baixo custo. 

Um terceiro motivo é o incentivo governamental a esse ramo alimentício. Isenções tributárias generosas são frequentes na relação entre o Estado e a indústria de ultraprocessados por todo o país. No início do mês de junho, em meio à pandemia do novo coronavírus, a Coca-Cola e a Ambev contam com a devolução de créditos de Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) dos refrigerantes produzidos na Zona Franca de Manaus. (3) Isso pode significar um prejuízo de até R$500 milhões à União e um contínuo prejuízo incalculável para a saúde do brasileiro.

“Se considerarmos o montante de dinheiro que está deixando de ser arrecadado sem a cobrança desses impostos, isso poderia ser convertido em questões de promoção de saúde e prevenção de doenças, principalmente em relação à própria obesidade e excesso de peso que o consumo desses refrigerantes causa”, afirma Emanuella Gomes Maia, uma das autoras do estudo e professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). .

O Brasil no cenário global

A relação da adoção de uma dieta saudável com os preços dos alimentos é estudada em diversos países. A tendência de dietas baseadas em ultraprocessados serem mais baratas que as saudáveis é observada em ambos: os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, calorias advindas de grãos, gorduras e açúcares são mais baratas que as de frutas e vegetais. (4) Assim, se torna possível relacionar a ingestão de alimentos de baixo valor nutricional ao baixo poder aquisitivo das famílias.

Apesar disso, no Brasil, uma dieta saudável ainda é mais barata que a baseada em ultraprocessados graças ao baixo custo dos variados grãos que consumimos. “Hoje em dia, a gente ainda consegue ter uma alimentação barata comendo bem. Por mais que eu coma frutas, hortaliças e carnes, que são caras, eu consumo feijão e arroz que é algo barato. Então, no equilíbrio, eu consigo manter uma alimentação saudável que é acessível”, explica Emanuella.

E a saúde?

O Brasil ainda segura as pontas quando o assunto é comida saudável. Todavia, se as mudanças de consumo de alimentos se mantiverem, a passagem pelo ano de 2026 abrirá portas para maiores dificuldades na saúde do brasileiro. Isso porque uma alimentação saudável é fator central no combate às doenças crônicas. 

A Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) publicou no ano passado um documento (5) que reúne evidências científicas que associam o consumo de ultraprocessados com o desenvolvimento de algumas doenças. Obesidade, problemas cardiovasculares, câncer, depressão e distúrbios gastrointestinais podem se desenvolver ou se intensificar a partir de uma dieta baseada em ultraprocessados.

A resistência da alimentação saudável

Para se alimentar bem no Brasil, não basta só querer. A alimentação saudável, isto é, baseada em produtos in natura ou minimamente processados deixou de ser uma questão de escolha com o agigantamento da indústria alimentícia. Exigir que famílias de baixa renda escolham comprar carnes frescas no lugar de hambúrgueres congelados, quando o mesmo valor pode comprar maior quantidade dos últimos, não é solução para o problema.

Mais do que isso, permitir que esse cenário continue é escancarar mais ainda a desigualdade social brasileira. Quanto mais cara for uma dieta saudável, menos presente ela se torna na vida da população de baixa renda. Essa parcela dos brasileiros, então, passa a ser mais propensa a desenvolver doenças crônicas e, consequentemente, se torna mais dependente de um sistema de saúde eficaz. Algumas soluções estão sempre em pauta entre os que estudam a área da alimentação. Uma delas é a taxação de bebidas açucaradas, (6) uma vez que a ingestão excessiva de açúcar está relacionada a um maior risco das doenças citadas anteriormente.

Refrigerantes e sucos industrializados são parte da rotina alimentar de crianças, adolescentes e jovens adultos e representam parte alarmante do consumo diário de açúcar desses.

A proposta é que os impostos sobre essas bebidas diminuam seu consumo e incentivem a ingestão de bebidas mais saudáveis. O México é um dos países que teve sucesso na adoção da medida: depois de um ano com um imposto de 10% sobre bebidas açucaradas, a redução de compra foi de 17% entre o terço mais pobre da população.

Fora isso, o Brasil também discute mudanças na rotulagem dos alimentos. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em 2016, divulgou uma pesquisa na qual 39,6% das pessoas disseram entender parcialmente ou muito pouco os rótulos nas embalagens de comida. Desde então, diferentes modelos de rotulagem são discutidos, com o objetivo de sinalizar de maneira mais clara o conteúdos e aditivos presentes nos alimentos. 

Mudanças de rotulagem e taxação de produtos ultraprocessados, por exemplo, não são interesses da gigante indústria alimentícia. Essas medidas também não são solução se não vierem acompanhadas de mudanças estruturais que possibilitem que a população de baixa renda tenha acesso à comida de verdade. O incentivo à agricultura familiar, na produção e venda de produtos, é essencial para que isso aconteça. Estimular o consumo de alimentos produzidos localmente também facilita a diminuição de preço deles, além de ser uma valorização da cultura e do comércio local.

É essencial desmistificar a alimentação como uma questão individual e compreender o papel do Estado nas mudanças do acesso à comida saudável. Independentemente de quais medidas forem tomadas, elas precisam ter como objetivo desacelerar o aumento do consumo de ultraprocessados. Retomar e reforçar a importância do arroz e feijão presentes diariamente no prato brasileiro pode ser um primeiro passo importante. 

(1) IBGE, Agência de Notícias. “POF 2017-2018: alimentos frescos e preparações culinárias predominam no padrão alimentar nacional”. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27298-pof-2017-2018-alimentos-frescos-e-preparacoes-culinarias-predominam-no-padrao-alimentar-nacional (Acesso em maio de 2020)

(2) Maia, E., Dos Passos, C., Levy, R., Bortoletto Martins, A., Mais, L., & Claro, R. (2020). What to expect from the price of healthy and unhealthy foods over time? The case from Brazil. Public Health Nutrition, 23(4), 579-588. doi:10.1017/S1368980019003586. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/public-health-nutrition/article/what-to-expect-from-the-price-of-healthy-and-unhealthy-foods-over-time-the-case-from-brazil/98FE380C358CCD2B25E99FFC7A4A8B9F

(3) O Joio e o Trigo. “Em meio à pandemia, governo dá crédito milionário a Coca-Cola e Ambev”. Disponível em: https://outraspalavras.net/ojoioeotrigo/2020/05/em-meio-a-pandemia-governo-da-credito-milionario-a-coca-cola-e-ambev/. (Acesso em junho de 2020)

(4) Drewnowski A. The cost of US foods as related to their nutritive value. Am J Clin Nutr. 2010;92(5):1181‐1188. doi:10.3945/ajcn.2010.29300. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/20720258/

(5) Food and Agriculture Organization of the United Nations. ”Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system”. Disponível em: http://www.fao.org/3/ca5644en/ca5644en.pdf

(6) Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável. “Por que taxar as bebidas açucaradas?” Disponível em: http://actbr.org.br/uploads/arquivo/1162_FactSheet_ImpostoBebidas.pdf

Por Gabriela Bonin
gabibonin@usp.br